La Tricoteuse (1869)  - William Bouguereau

 


 
 

 

Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?
 
 

  
 

Eu cantarei de amor tão docemente 
  
Por uns têrmos em si tão concertados,

Que dois mil acidentes namorados

Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,

Pintando mil segredos delicados,

Brandas iras, suspiros magoados,

Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprêzo honesto

De vossa vista branda e rigorosa,

Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto

A composição alta e milagrosa,

Aqui falta saber, engenho e arte.
 
 

 


 
  
 

Mudam-se os tempos, 
  
Mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o Mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.
 
 


  
 

No mundo quis um tempo que se achasse

o bem que por acerto ou sorte vinha;

e, por experimentar que dita tinha,

quis que a Fortuna em mim se experimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse

que nem ter esperanças me convinha,

nunca nesta tão longa vida minha

cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,

por ver se se mudava a sorte dura;

a vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)

já sei que deste meu buscar ventura,

achado tenho já, que não a tenho.
 
 


  
 

Transforma-se o amador na coisa amada, 

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semidéia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim como a alma minha se conforma,

Está no pensamento como idéia;

O vivo e puro amor de que sou feito,

Como a matéria simples busca a forma.
 
 


  
  
 

Busque Amor novas artes, novo engenho, 
  
para matar-me, e novas esquivanças;

que não pode tirar-me as esperanças,

que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças,

andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto

onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto

um não sei quê, que nasce não sei onde,

vem não sei como, e dói não sei porquê.
 
 


  
 

Tanto de meu estado me acho incerto, 
  
que em vivo ardor tremendo estou de frio;

sem causa, juntamente choro e rio,

o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;

da alma um fogo me sai, da vista um rio;

agora espero, agora desconfio,

agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,

numa hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,

respondo que não sei; porém suspeito

que só porque vos vi, minha Senhora.
 
 


  
  
 

   
Um mover de olhos, brando e piedoso,

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Uma pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;

Um medo sem ter culpa; um ar sereno;

Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.
 
 


  
 

 

Horas breves de meu contentamento

Nunca me pareceu quando vos tinha,

Que vos visse mudadas tão asinha

Em tão compridos anos de tormento.

As altas tôrres, que fundei no vento,

Levou, em fim, o vento que as sós tinha;

Do mal que me ficou a culpa é minha,

Pois sôbre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com brandas mostras aparece:

Tudo possível faz, tudo assegura;

Mas logo no melhor desaparece.

Estranho mal! Estranha desventura!

Por um pequeno bem, que desfalece,

Um bem aventurar, que sempre dura!

 

 

 

Luís Vaz de Camões

(1524?-1580)

 

Luís Vaz de Camões, o mais representativo poeta português. Nasceu provavelmente em Lisboa, cidade onde morreu. Sua obra Os Lusíadas, publicada em 1572 após passar pela censura da Inquisição, consolidou a língua portuguesa e é considerada o poema épico nacional lusitano. Além de Os Lusíadas, Camões só publicou, enquanto viveu, mais três poemas.

Pouco se sabe sobre a vida de Luís Vaz de Camões. Acredita-se que tenha estudado na Universidade de Coimbra, onde teria se formado em Artes. Apesar de não ser rica, sua família freqüentava a corte, o que lhe valeu a chance de aproximar-se de Dom João III. Porém, uma aventura amorosa com uma das damas-de-companhia da rainha Catarina de Ataíde levou-o ao desterro no Ribatejo. Estudiosos da obra de Camões acreditam que seus versos de amor foram inspirados nesta paixão tumultuada e perdida.

Em 1547, afastado da capital, Camões decidiu seguir a carreira militar e partiu para o norte da África. Combatendo em Ceuta, perdeu o olho direito. Em 1550, retornou a Lisboa onde intercalou sua vida entre a corte, que voltara a lhe abrir as portas, e noitadas boêmias. Em uma briga de rua, feriu um cavalariço do rei e foi condenado a um ano de prisão. Nesta época, já havia começado a trabalhar em Os Lusíadas, um canto de louvor ao descobrimento da rota marítima para as Índias pelo navegador Vasco da Gama.

Libertado em 1553, Camões partiu para combater na Índia. Depois, foi transferido para Macau. Em 1559, acusado de extorsão, enviaram-no para a Índia, viagem em que sobreviveu a um naufrágio. Em 1570, voltou a Portugal, via Moçambique, com o manuscrito de Os Lusíadas ainda inédito. Após a publicação — apesar da fama transitória e de uma pensão que lhe foi outorgada pelo rei Dom Sebastião — Camões iniciou um caminho de decadência em que chegou a comer por favor de amigos. Morreu pobre e esquecido.

Os Lusíadas, escrito em dez cantos de versos octassílabos, foi influenciado tanto pela Eneida, de Virgílio, como por Orlando Furioso, do poeta italiano Ludovico Ariosto. Entrelaçadas com a história da viagem de Vasco da Gama, Camões louva a história portuguesa, as idéias cristãs e os sentimentos humanistas. Mas, ainda que exalte as façanhas dos lusitanos, Os Lusíadas também reflete a visão crítica e amarga de seu autor sobre a política colonialista de Portugal.

A fama de Luís Vaz de Camões também se deve a numerosos poemas publicados postumamente: 211 sonetos, 142 redondilhas, 15 canções, 13 odes, nove églogas, cinco oitavas, incontáveis cartas e três peças teatrais, duas das quais baseadas em modelos do teatro clássico. O tema principal da poesia de Camões é o conflito entre o amor apaixonado e sensual e a idéia neoplatônica de amor espiritual. Sua obra, de notável perfeição e simplicidade formal, levou Wilhelm Storck a chamá-lo de "filho legítimo do Renascimento e humanista dos mais doutos e distintos de seu tempo".

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft

 

  

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