Amor é um fogo que arde sem se ver,
é
ferida que dói, e não se sente;
é
um contentamento descontente,
é
dor que desatina sem doer.
É
um não querer mais que bem querer;
é
um andar solitário entre a gente;
é
nunca contentar-se de contente;
é
um cuidar que ganha em se perder.
É
querer estar preso por vontade;
é
servir a quem vence, o vencedor;
é
ter com quem nos mata, lealdade.
Mas
como causar pode seu favor
nos
corações humanos amizade,
se
tão contrário a si é o mesmo Amor?
Eu
cantarei de amor tão docemente Por uns
têrmos em si tão concertados,
Que
dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprêzo honesto
De
vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A
composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.
Mudam-se os tempos, Mudam-se as
vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do
mal ficam as mágoas na lembrança,
E
do bem, se algum houve, as saudades.
O
tempo cobre o chão de verde manto,
Que
já coberto foi de neve fria,
E
em mim converte em choro o doce canto.
E,
afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que
não se muda já como soía.
No
mundo quis um tempo que se achasse
o
bem que por acerto ou sorte vinha;
e,
por experimentar que dita tinha,
quis que a Fortuna em mim se experimentasse.
Mas
por que meu destino me mostrasse
que
nem ter esperanças me convinha,
nunca nesta tão longa vida minha
cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra e estado,
por
ver se se mudava a sorte dura;
a
vida pus nas mãos de um leve lenho.
Mas
(segundo o que o Céu me tem mostrado)
já
sei que deste meu buscar ventura,
achado tenho já, que não a tenho.
Transforma-se o amador na coisa
amada,
Por
virtude do muito imaginar;
Não
tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se
nela está minha alma transformada,
Que
mais deseja o corpo de alcançar?
Em
si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas
esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim como a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
O
vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Busque Amor novas artes, novo
engenho, para matar-me, e novas
esquivanças;
que
não pode tirar-me as esperanças,
que
mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que
não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que
dias há que n'alma me tem posto
um
não sei quê, que nasce não sei onde,
vem
não sei como, e dói não sei porquê.
Tanto de meu estado me acho
incerto, que em vivo ardor tremendo
estou de frio;
sem
causa, juntamente choro e rio,
o
mundo todo abarco e nada aperto.
É
tudo quanto sinto, um desconcerto;
da
alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando,
numa hora acho mil anos, e é de jeito
que
em mil anos não posso achar uma hora.
Se
me pergunta alguém porque assim ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que
só porque vos vi, minha Senhora.
Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem
ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De
qualquer alegria duvidoso;
Um
despejo quieto e vergonhoso;
Um
repouso gravíssimo e modesto;
Uma
pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um
encolhido ousar; uma brandura;
Um
medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um
longo e obediente sofrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da
minha Circe, e o mágico veneno
Que
pôde transformar meu pensamento.
Horas breves de meu contentamento
Nunca me pareceu quando vos tinha,
Que
vos visse mudadas tão asinha
Em
tão compridos anos de tormento.
As
altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sós tinha;
Do
mal que me ficou a culpa é minha,
Pois sôbre cousas vãs fiz fundamento.
Amor com brandas mostras aparece:
Tudo possível faz, tudo assegura;
Mas
logo no melhor desaparece.
Estranho mal! Estranha desventura!
Por
um pequeno bem, que desfalece,
Um bem aventurar,
que sempre dura!
Luís Vaz
de Camões
(1524?-1580)
Luís Vaz
de Camões, o
mais representativo poeta português. Nasceu provavelmente em
Lisboa, cidade onde morreu. Sua obra Os Lusíadas,
publicada em 1572 após passar pela censura da Inquisição,
consolidou a língua portuguesa e é considerada o poema épico
nacional lusitano. Além de Os Lusíadas, Camões só
publicou, enquanto viveu, mais três poemas.
Pouco se sabe
sobre a vida de Luís Vaz de Camões. Acredita-se que tenha
estudado na Universidade de Coimbra, onde teria se formado em
Artes. Apesar de não ser rica, sua família freqüentava a
corte, o que lhe valeu a chance de aproximar-se de Dom João
III. Porém, uma aventura amorosa com uma das
damas-de-companhia da rainha Catarina de Ataíde levou-o ao
desterro no Ribatejo. Estudiosos da obra de Camões acreditam
que seus versos de amor foram inspirados nesta paixão
tumultuada e perdida.
Em 1547,
afastado da capital, Camões decidiu seguir a carreira militar
e partiu para o norte da África. Combatendo em Ceuta, perdeu o
olho direito. Em 1550, retornou a Lisboa onde intercalou sua
vida entre a corte, que voltara a lhe abrir as portas, e
noitadas boêmias. Em uma briga de rua, feriu um cavalariço do
rei e foi condenado a um ano de prisão. Nesta época, já havia
começado a trabalhar em Os Lusíadas, um canto de louvor
ao descobrimento da rota marítima para as Índias pelo
navegador Vasco da Gama.
Libertado em
1553, Camões partiu para combater na Índia. Depois, foi
transferido para Macau. Em 1559, acusado de extorsão,
enviaram-no para a Índia, viagem em que sobreviveu a um
naufrágio. Em 1570, voltou a Portugal, via Moçambique, com o
manuscrito de Os Lusíadas ainda inédito. Após a
publicação — apesar da fama transitória e de uma pensão que
lhe foi outorgada pelo rei Dom Sebastião — Camões iniciou um
caminho de decadência em que chegou a comer por favor de
amigos. Morreu pobre e esquecido.
Os
Lusíadas, escrito em
dez cantos de versos octassílabos, foi influenciado tanto pela
Eneida, de Virgílio, como por Orlando Furioso,
do poeta italiano Ludovico Ariosto. Entrelaçadas com a
história da viagem de Vasco da Gama, Camões louva a história
portuguesa, as idéias cristãs e os sentimentos humanistas.
Mas, ainda que exalte as façanhas dos lusitanos, Os
Lusíadas também reflete a visão crítica e amarga de seu
autor sobre a política colonialista de Portugal.
A fama de Luís
Vaz de Camões também se deve a numerosos poemas publicados
postumamente: 211 sonetos, 142 redondilhas, 15 canções, 13
odes, nove églogas, cinco oitavas, incontáveis cartas e três
peças teatrais, duas das quais baseadas em modelos do teatro
clássico. O tema principal da poesia de Camões é o conflito
entre o amor apaixonado e sensual e a idéia neoplatônica de
amor espiritual. Sua obra, de notável perfeição e simplicidade
formal, levou Wilhelm Storck a chamá-lo de "filho legítimo do
Renascimento e humanista dos mais doutos e distintos de seu
tempo".
Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000
Microsoft
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