Work Interrupted (1891)   - William Bouguereau
 
 
 

 
 
 

 

 

 

Amar
  
 

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: aqui... além...

mais este e aquele, o outro e a toda gente...

Amar! Amar!

E não amar ninguém! recordar? Esquecer? Indiferente!...

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disse que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que eu saiba me perder... pra te encontrar...
 
 

 


  
Amo...
 
 

 as pedras, os astros e o luar que beija as ervas do atalho escuro,

Amo as águas de anil e o doce olhar dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro e dos sapos, o brando tilintar

De cristais que se que se afagam devagar,

E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam

De corações que sentem e não falam,

Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!

Soluço imenso, eterno, que é a voz

Do nosso grande e mísero Destino!...

No desequilíbrio dos mares, as proas giram sozinhas...

Numa das naves que afundaram é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos sem desespero e sem desgosto,

e morri de infinitas mortes guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram meu olhos, entre águas e areias,

cegaram como os das estátuas, a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar e endureceram junto ao vento,

e perderam a cor que tinham e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava desprendeu-se e caiu de mim:

e só talvez ele ainda viva dentro destas águas sem fim.
 
 


  
 
Súplica
 
 

Olha pra mim, amor, olha pra mim;

Meus olhos andam doidos por te olhar!

Cega-me com o brilho de teus olhos

Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arninho imaculado

Duma brancura casta que entontece;

Tua linda cabeça loira e bela

Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas

Feito de fios brilhantes d'astros belos

Pisa o manto real de negras trevas

Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho

Quando os cerro de leve, docemente...

 Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te

Nessa cadeia assim eternamente! ...

Vem para mim, amor... Ai não desprezes

A minha adoração de escrava louca!

Só te peço que deixes exalar

Meu último suspiro na tua boca!...
 
 


  
 

Sonhos
 
 

Ter um sonho, um sonho lindo,

Noite branda de luar,

Que se sonhasse a sorrir...

Que se sonhasse a chorar...

Ter um sonho, que nos fosse

A vida, a luz, o alento,

Que a sonhar beijasse doce

A nossa boca... um lamento...

Ser pra nós o guia, o norte,

Na vida o único trilho;

E depois ver vir a morte

Despedaçar esses laços!...

...É pior que ter um filho

Que nos morresse nos braços!
 
 


 
O Meu Impossível
 
 

Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,

É um brasido enorme a crepitar!

Ânsia de procurar sem encontrar

A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto!

E o que mais pesa

É nada ser perfeito.

É deslumbrar

A noite tormentosa até cegar,

E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo

E não me compreenderam!...

Vão e mudo

Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora

Contar, não a chorava como agora,

Irmãos, não a sentia como a sinto!...
 
 


  
 

Simplesmente amor...
 
 

Saudades

Saudades ! Sim.. talvez... e por que não ?

Se o nosso sonho foi tão alto e forte

que bem pensava vê-lo até à morte

deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer ! Para quê?... Ah! como é vão !

Que tudo isso, Amor, nos não importe.

Se ele deixou beleza que conforte

deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vêzes, Amor, já te esqueci,

para mais doidamente me lembrar.

mais doidamente me lembrar de ti !

E quem dera que fôsse sempre assim:

quando menos quisesse recordar

mais a saudade andasse presa a mim !
 
 


  
 

Loucura
 
 

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada

Pavorosa! Não sei onde era dantes.

Meu solar, meus palácios, meus mirantes!

Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...

Passa em tropel febril a cavalgada

Das paixões e loucuras triunfantes!

Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!

Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...

Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!

Loucura de esboçar-se, a enegrecer

Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!

Ó pavoroso e atroz mal de trazer

Tantas almas a rir dentro de mim!
 
 


  
 

Eu...
 
 

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver,

E que nunca na vida me encontrou!
 
 

 

 

Esperas...
 
 

Não me digas adeus, ó sombra amiga,

Abranda mais o ritmo dos teus passos;

Sente o perfume da paixão antiga,

os nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,

A fantástica e estranha rapariga

Que um dia ficou presa nos teus braços...

Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:

Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,

Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...

Vê que pra além de mim já não há nada

E nunca mais me encontras neste mundo!...
 
 


  
 

Esquecimento
 
 

Esse de quem eu era e que era meu,

E foi um sonho e foi realidade,

Que me vestiu a alma de saudade,

Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,

E foi longínqua toda a claridade!

Ceguei... tateio sombras... que ansiedade!

Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...

A sombra dos meus olhos, a escurecer...

Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desde que era meu já me não lembro...

Ah! a doce agonia de esquecer

A lembrar doidamente o que esquecemos!...
 
 


  
 

Inconstância
 
 

Procurei o amor, que me mentiu.

Pedi à vida mais do que ela dava;

Eterna sonhadora edificava

Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,

E tanto beijo a boca me queimava!

E era o sol que os longes deslumbrava

Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...

Atrás do sol dum dia outro a aquecer

As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo

É igual a outro amor que vai surgindo,

Que há-de partir também... nem eu sei quando...
 
 


 

 

Volúpia
 
 

No divino impudor da mocidade,

Nesse êxtase pagão que vence a sorte,

Num frémito vibrante de ansiedade,

Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...

A nuvem que arrastou o vento norte...

- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:

Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...

São os dedos do sol quando te abraço,

Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos

Vão-te envolvendo em círculos dantescos

Felinamente, em voluptuosas danças...
 
 


  
 

Tarde de mais...
 
 

Quando chegaste enfim, para te ver

Abriu-se a noite em mágico luar;

E para o som de teus passos conhecer

Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste, enfim!

Milagre de endoidar!

Viu-se nessa hora o que não pode ser:

Em plena noite, a noite iluminar

E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia de oiro dos desertos

Procurara-te em vão!  Braços abertos,

Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu era nova e linda!...

E a minha boca morta grita ainda:

Por que chegaste tarde, ó meu Amor?!...
 
 


  
 

Outonal
 
 

Caem as folhas mortas sobre o lago;

Na penumbra outonal, não sei quem tece

As rendas do silêncio… Olha, anoitece!

- Brumas longínquas do País do Vago…

Veludos a ondear... Mistério mago...

Encantamento… A hora que não esquece,

A luz que a pouco e pouco desfalece,

Que lança em mim a bênção dum afago…

Outono dos crepúsculos dourados,

De púrpuras, damascos e brocados!

- Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,

Das magníficas noites voluptuosas

Em que eu soluço a delirar de amor… 


     


   

Aos olhos dele
 
 

Não acredito em nada. As minhas crenças

Voaram como voa a pomba mansa;

Pelo azul do ar. E assim fugiram

As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda a gente

Eu digo sempre, embora magoada:

Não acredito em Deus e a Virgem Santa

É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,

Duma luz suavíssima de dor...

E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa

Que criou esse brilho que m'encanta!

Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus! 
  
 

 


 

 

Folhas de Rosa
 
 

Todas as prendas que me deste, um dia,

Guardei-as, meu encanto, quase a medo,

E quando a noite espreita o pôr-do-sol

Eu vou falar com elas em segredo ...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,

Choro e rio com elas, mansamente...

Pouco a pouco o perfume do outrora

Flutua em volta delas, docemente ...

Pelo copinho de cristal e pata

Bebo uma saudade estranha e vaga,

Uma saudade imensa e infinita

Que triste me deslumbra e  m'embriaga

O espelho de prata cinzelada,

A doce oferta que eu amava tanto,

Que refletia outrora tantos risos,

E agora reflete apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,

De lágrimas e estrelas constelado,

Resumem em seus brilhos o que tenho

De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,

Aquela que mal fala à fantasia,

São as folhas daquela rosa branca

Que a meus pés desfolhaste, aquele dia....
 
 

 


  
 

Não ser
 
 

Quem me dera voltar à inocência

Das coisas brutas, sãs, inanimadas,

Despir o vão orgulho, a incoerência:

- Mantos rotos de estátuas mutiladas!

Ah!  Arrancar às carnes laceradas

Seu mísero segredo de consciência!

Ah!  Poder ser apenas florescência

De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer,

De ramos graves, plácidos, absortos

Na mágica tarefa de viver!

Ser haste, seiva, ramaria inquieta,

Erguer ao sol o coração dos mortos

Na urna de oiro de uma flor aberta!... 


  
  
  

 

 

 Amor que morre
 
 

O nosso amor morreu... Quem o diria?

Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,

Ceguinha de te ver, sem ver a conta

Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...

E outro clarão, ao longe, já desponta!

Um engano que morre... e logo aponta

A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver

São precisos amores, pra morrer,

E são precisos sonhos pra partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso

Fazer do amor que parte o claro riso

De que outro amor impossível que há-de vir! 
  
  


 


  
Teus olhos
 
 

Olhos do meu Amor! Infantes loiros

Que trazem os meus presos, endoidados!

Neles deixei, um dia, os meus tesouros:

Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Neles ficaram meus palácios moiros,

Meus carros de combate, destroçados,

Os meus diamantes, todos os meus oiros

Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!

Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas...

Enigmáticas campas medievais...

Jardins de Espanha... catedrais eternas...

Berço vindo do Céu à minha porta...

Ó meu leito de núpcias irreais!...

Meu sumptuoso túmulo de morta!... 


 
 


  

Ao vento
 
 

O vento passa a rir, torna a passar,

Em gargalhadas ásperas de demente;

E esta minh'alma trágica e doente

Não sabe se há de rir, se há de chorar!

Vento de voz tristonha, voz plangente,

Vento que ris de mim, sempre a troçar,

Vento que ris do mundo e do amar,

A tua voz tortura toda a gente!...

Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!

Desabafa essa dor a sós comigo,

E não rias assim!... Ó vento, chora!

Que eu bem conheço, amigo, esse fadário

Do nosso peito ser como um Calvário,

Ea gente andar a rir pela vida fora!!... 

 

 


  
Fragmentos
 
 

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e Além Dor!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!

É condensar o mundo num só grito!

Beija-me as mãos, amor, devagarinho...

Como se os dois nascêssemos irmãos,

Aves, cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!...

Que fantasia louca

Guardar assim, fechados, nestas mãos,

Os beijos que sonhei pra minha boca!
 
 

 


Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te

Olhos buscando os teus por toda parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas...

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...

 

 

Tortura

 

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,
e puro como um ritmo de oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!

 

 

Florbela Espanca

(1894-1930)

 

Florbela Espanca, poetisa portuguesa, autora de sonetos de acentuada sensibilidade artística.

Traduz de forma límpida a livre intimidade da mulher, pelo que pode considerar-se que o recente movimento literário inspirado em vivências femininas encontrou nela suas raízes e seu estímulo.

São reconhecidas em suas obras influências de Antero de Quental e de Antonio Nobre e em seu estilo se observam reminicências dos estetecistas e parnasianos. A intensidade erótica que transmitem seus poemas oscila entre o extremo egocentrismo, o sublime sacrifício — com traços de Mariana Alcoforado — e os momentos de bem-aventurança plena, na qual a fusão total com o objeto amado a aproxima de Deus. De uma lírica emocional e ardente, saltam ante o leitor todos os estados amorosos, desde a ternura sincera à exaltação sensual, à tristeza dos momentos de lucidez, à decepção, ao desencanto e ao agudo sofrimento. As inflexões contrastantes de sua poesia não são construções literárias e formais; originam-se na própria vivência do arrebatador e do adverso, do narcisismo e da anulação.

Seus versos transportam à imensa planície do Alentejo, de onde é originária, sempre presente e sugerida em imagens de extrema sensibilidade e beleza. Sua primeira obra publicada foi Livro de Mágoas (1919), a que se seguiram Livro de Soror Saudade (1923); Juvenília (1931), que reúne a produção poética de 1916-1917; Charneca em flor (1931), em cuja segunda edição, desse mesmo ano, se juntaram os sonetos Reliquiae;Cartas (1931); As máscaras do destino e Dominó negro (contos, 1931). Foi publicado, também, Sonetos completos, já com 24 edições. A consciência clamorosa da solidão no amor, os excessos de insatisfação traduzidos na ânsia de infinito, de absoluto, que ficam mais dramáticos pela comprovação do caráter transitório da existência, a profunda depressão causada pela morte do irmão e o malogro de três casamentos a conduzem à desesperada opção do suicídio, no dia em que faria 36 anos.

 

Fonte: Enciclopédia Encarta 2000 - Microsoft

 

 

 
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