Quando o amor ...
Acenar, siga-o, ainda que por caminhos ásperos e íngremes
E quando suas asas o envolverem, renda-se a ele ainda que
a
lâmina escondida sob suas asas possa feri-lo.
E quando ele falar a você, acredite no que ele diz,
ainda que sua voz possa destroçar seus sonhos,
assim como o vento norte devasta o jardim.
Pois, se o amor o coroa, ele também o crucifica.
Se o ajuda a crescer, também o diminui.
Se o faz subir às alturas e acaricia seus ramos mais
tenros que tremem ao sol, também o faz descer às raízes
e abala a sua ligação com a terra.
Como os feixes de trigo, ele o mantém íntegro.
Debulha-o até deixa-lo nu.
Transforma-o, livrando-o de sua palha.
Tritura-o, até torna-lo branco.
Amassa-o, até deixa-lo macio;
e então submete ao fogo para que se transforme
em pão no banquete sagrado de Deus.
Todas essas coisas pode o amor fazer para que
você conheça os segredos do seu coração,
e com esse conhecimento se torne um fragmento
do coração, da vida.
A Tempestade
O Pássaro e o homem tem essências diferentes.
O homem vive à sombra de leis e tradições por ele
inventadas;
o pássaro vive segundo a lei universal que faz girar os
mundos.
Acreditar é uma coisa; viver conforme o que se acredita é
outra.
Muitos falam como o mar, mas vivem como os pântanos.
Muitos levantam a cabeça acima dos montes;
mas sua alma jaz nas trevas das cavernas.
A civilização é uma arvore idosa e carcomida,
cujas flores são a cobiça e o engano e cujas frutas
são a infelicidade e o desassossego.
Deus criou os corpos para serem os templos das almas.
Devemos cuidar desses templos para que sejam
dignos da divindade que neles mora.
Procurei a solidão para fugir dos homens, de suas leis,
de suas tradições e de seu barulho.
Os endinheirados pensam que o sol e a lua e as estrelas
se levantam
dos seus cofres e se deitam nos seus bolsos.
Os políticos enchem os olhos dos povos com poeira
dourada e seus ouvidos com falsas promessas.
Os sacerdotes aconselham os outros,
mas não aconselham a si mesmos,
e exigem dos outros o que não exigem de si mesmos.
Vã é a civilização. E tudo o que está nela é vão.
As descobertas e invenções nada são senão brinquedos
com a mente se diverte no seu tédio.
Cortar as distâncias, nivelar as montanhas,
vencer os mares, tudo isso não passa de
aparências enganadoras, que não alimentam o
coração e nem elevam a alma.
Quanto a esses quebra-cabeças, chamados ciências e artes,
nada são senão cadeias douradas com os quais o homem
se acorrenta, deslumbrados com seu brilho e tilintar.
São os fios da tela que o homem tece desde o inicio
do tempo sem saber que, quando terminar sua obra,
terá construído a prisão dentro da qual ficará preso.
Uma coisa só merece nosso amor e nossa dedicação, uma
coisa só...
É o despertar de algo no fundo dos fundos da alma.
Quem o sente não o pode expressar em palavras.
E quem não o sente, não poderá nunca conhecê-lo através
de palavras.
Faço votos para que aprendas a amar as tempestades em vez
de fugir delas.
Os desejos do amor
O amor não tem outro desejo senão o de atingir a sua
plenitude.
Se, contudo, amar é precisar ter desejos, sejam estes os
vossos desejos:
De se diluir no amor e ser como um riacho que canta sua
melodia para a noite...
De conhecer a dor de sentir ternura demasiada...
De ficar ferido por vossa própria compreensão do amor ...
De sangrar de boa vontade e com alegria...
De acordar na aurora com o coração alado
e agradecer por um novo dia de amor...
De descansar ao meio-dia e meditar sobre o êxtase
do amor...
De voltar para casa a noite com gratidão ...
E de adormecer com uma prece no coração para o bem amado,
e nos lábios uma canção de bem aventurança ...
Então, um homem disse-lhe:
Fala-nos do conhecimento de si. E ele respondeu:
Os vossos corações conhecem, no silêncio,
os segredos dos dias e das noites.
Mas os vossos ouvidos têm sede de ouvir finalmente
o eco do saber dos vossos corações.
Gostaríeis de saber pelo verbo
o que sempre soubeste pelo pensamento.
Gostaríeis de sentir com os dedos
o corpo nu dos vossos sonhos.
E está certo que assim o queirais.
A fonte oculta da vossa alma deve necessariamente
jorrar e correr a murmurar para o mar;
e o tesouro das vossas profundezas infinitas
revelar-se aos vossos olhos.
Mas que não haja balança
que pese o vosso tesouro desconhecido;
e não procureis explorar os abismos do vosso saber
com a vara ou com a sonda,
pois o eu é um mar sem limites e sem medida.
Não digais: «Encontrei a verdade»,
mas antes: «Encontrei uma verdade.»
Não digais: «Encontrei o caminho da alma.»
Mas antes: «Cruzei-me com a alma que seguia pelo meu
caminho.»
Pois a alma percorre todos os caminhos.
A alma não caminha sobre uma linha
nem se alonga como uma vara.
A alma abre-se a si própria
como se abre um lótus de inúmeras
pétalas.
O Profeta
(trecho)
"Como poderei ir-me em paz e sem pena ?
Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta
cidade.
Longos foram os dias de amargura que passei dentro de
suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode
despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão ?
Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas
ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham,
desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me
sentir oprimido e entristecido.
Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a
própria epiderme que arranco com minhas mãos.
Nem é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um
coração enternecido pela fome e pela sede.
Contudo, não posso demorar-me por mais tempo.
O mar, que chama a si todas as coisas, está me chamando,
e devo embarcar.
Pois permanecer aqui, enquanto as horas queimam-se na
noite, seria congelar-me e cristalizar-me num molde.
De bom grado levaria comigo tudo o que está aqui.
Mas como fazê-lo ? A voz não leva consigo a língua e os
lábios que lhe deram asas.
É isolada que deve procurar o éter.
É também só e sem ninho que a águia voará rumo ao
Sol."
E uma mulher que acalentava um bebê disse,
- Fale-nos de crianças...
E ele disse:
- Tuas crianças não são tuas crianças. Elas são os filhos
da Vida que anseia por si.
Elas vieram através de ti mas não de ti, e a despeito de
estarem contigo elas não te pertencem. Tu podes dar-lhes teu
amor mas não teus pensamentos, pois elas têm seus próprios
pensamentos. Tu podes hospedar seus corpos mas não suas almas,
pois suas almas habitam a casa do amanhã, que tu não podes
visitar, mesmo em teus sonhos.
Tu podes empenhar-te para seres como elas, mas não tentes
fazê-las serem como tu, pois a vida não caminha para trás nem
coabita com o ontem.
Tu és o arco do qual tuas crianças, como flechas vivas,
são impulsionadas. Arqueiro vede a marca sobre a trajetória do
infinito, a ele te dobra com seu poder para que tuas flechas
sigam velozes e para longe. Deixes que
a flexão na mão do arqueiro seja para o contentamento e a
felicidade; Pois assim como ele ama a flecha que voa, Ele ama
também o arco que seja firme".
"O Profeta"
(trecho)
Nús ao Vento
Estar nús ao vento e brincar com sua pele
Deixar-se beijar pelo mar,
pela chuva, pelo orvalho,
pelos humores de uma noite quente de verão
Fazer um manto com a lua
que
brinca entre as árvores
E
quando o sol subir alto no céu,
derreter no seu quente suspiro
...
Aprendi o silêncio com os faladores,
a
tolerância com os intolerantes,
a
bondade com os maldosos,
e,
por estranho que pareça
sou
grato a esses
professores.
Vós conversais quando
deixais de estar em paz com vossos pensamentos.
E
quando não podeis mais viver na solidão de vosso coração,
procurais viver nos vossos lábios, e encontrais então uma
diversão e um passatempo nas vibrações emitidas.
Em
grande parte de vossas conversações, o pensamento é meio
assassinado.
Pois o pensamento é uma ave do espaço que, numa
gaiola de palavras, pode abrir as asas, mas não pode voar.
Há
entre vós aqueles que procuram os faladores por medo da solidão.
A
quietude da solidão revela-lhes seu Eu-desnudo, e eles preferem
escapar-lhe.
E
há aqueles que falam e, sem o saber ou prever, traem uma verdade
que eles próprios não compreendem.
E
há aqueles que possuem a verdade dentro de si, mas não a
expressam em palavras. No íntimo de tais pessoas o espírito
habita num silêncio
rítmico.
"OProfeta (A
conversação)
Entre as Colinas
Entre as colinas, quando vos sentardes à sombra
fresca dos álamos brancos, partilhando da paz e da
serenidade dos campos e dos prados distantes, então que
vosso coração diga em silêncio: "Deus repousa na Razão". E
quando bramir a tempestade, e o vento poderoso sacudir a
floresta, e o trovão e o relâmpago proclamarem a majestade
do céu, então que vosso coração diga com temor e
respeito: "Deus age na Paixão". E já que sois um sopro na
esfera de Deus e uma folha na floresta de Deus, também
devereis descansar na razão e agir na
paixão.
És
livre na luz do Sol e livre ante a estrela da
noite E
és livre quando não há sol, nem lua ou
estrelas. Inclusive, és livre quando fecha os olhos a tudo que
existe. Porém, és escravo de quem amas pelo fato mesmo de
amá-lo. E és escravo de quem te ama, pelo fato mesmo de
deixar-te amar.
Amizade
Vosso amigo é a satisfação de vossas
necessidades. Ele é o campo que semeais com carinho e
ceifais com agradecimento. É vossa mesa e vossa
lareira. Pois ides a ele com vossa fome e procurais em
busca de paz. Quando vosso amigo expressa seu pensamento,
nao temais o "não" de vossa própria opinião, nem
prendais o "sim". E quando ele se cala, que vosso coração
continue a ouvir seu coração, Porque na amizade, todos os
desejos, ideais, esperanças, nascem e são partilhados sem
palavras, numa alegria silenciosa. Quando vos separais de
vosso amigo, não vos aflijais. Pois o que amais nele pode
tornar-se mais claro na sua ausência, como para o alpinista a
montanha aparece mais clara, vista da planicie. E que não
haja outra finalidade na amizade a não ser o
amadurecimento de espirito. Pois o amor que procura
outra coisa a não ser a revelação de seu
próoprio mistério não é amor, mas uma rede armada, e
somente o inaproveitavel é nela apanhado. E que o
melhor de vos próprios seja para vosso amigo. Se ele deve
conhecer o fluxo de vossa maré, que conheça também o seu
refluxo. Pois, que achais seja vosso amigo para que o
procureis somente a fim de matar o tempo? Procurai-o sempre
com horas para viver: O papel do amigo é encher vossa
necessidade, não vosso vazio. E na docura da amizade, que
haja risos e o partilhar dos prazeres. Pois no orvalho de
pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e sente-se
refrescado.
"O Profeta"
(trecho)
Sete vezes desprezei minha alma:
Quando a vi disfarçar-se com a humildade para alcançar a
grandeza;
Quando a vi coxear na presença dos coxos;
Quanto lhe deram a escolher entre o fácil e o difícil, e
escolheu o fácil;
Quando cometeu um mal e consolou-se com a idéia de que
outros cometem o mal também;
Quando aceitou a humilhação por covardia e atribuiu sua
paciência à fortaleza;
Quando desprezou a fealdade de uma face que não era, na
realidade, senão uma de suas próprias máscaras;
Quando considerou uma virtude elogiar e glorificar.
Gibran Khalil
Gibran
(1883-1931)
Gibran Khalil Gibran nasceu em
6 de dezembro de 1883, na cidade de Bisharri, no sopé da
Montanha do Cedro, no norte do Líbano. O pai, um coletor de
impostos, bebia e jogava, mas vinha de uma linhagem de
intelectuais e de religiosos maronitas pelo lado da mãe.
Khalil não teve uma educação formal, mas aprendeu inglês,
francês e árabe ao mesmo tempo, além de revelar-se uma
promessa precoce como artista, desenvolvendo uma paixão por
Leonardo da Vinci aos seis anos de idade. Aos onze
anos, toda a família, com exceção do pai, emigrou para a
América e estabeleceu-se em uma comunidade de imigrantes
libaneses no bairro chinês de Boston. A mãe trabalhava como
costureira, e o irmão mais velho, Boutros, abriu um armazém.
Gibran freqüentou a escola, onde seu nome começou a ser
escrito como Khalil. Foi mandado para aulas de desenho e em
seguida foi apresentado ao fotógrafo Fred Holland Day, que o
usou como modelo e lhe encomendava desenhos.
Em 1898, Gibran
foi mandado para casa para freqüentar a escola Al Hikma, em
Beirute. Estudou literatura francesa romântica e árabe. Em
1902, voltou para a família via Paris. Uma das irmãs, Sultana,
morreu de tuberculose antes da sua chegada, e foi logo seguida
pelo irmão, Boutros. Dentro de apenas algumas semanas, a mãe
morreu de câncer, deixando-o com a irmã caçula, Mariama.
Gibran vendeu o armazém e passou a ganhar a vida como pintor.
Mais tarde, teve um romance com a jornalista Josephine
Peabody, que o apresentou a Mary Haskell, uma professora que
viria a ser sua patrocinadora e colaboradora. Sua carreira
como escritor estabeleceu-se quando começou a escrever para o
jornal Mohajer, de emigrantes árabes.
Em 1905, o
primeiro livro, AI-Musiqah, foi publicado. Seguiram-se
mais artigos e livros, a maioria criticando o Estado e a
Igreja e, em 1908, seu livro de poemas em prosa, Ai-Arwah
ai Mutamarridah, foi proibido pelo governo sírio e ele foi
excomungado pela Igreja Sida. Mary Haskell patrocinou-lhe
então uma estada de dois anos em Paris, onde Gibran estudou
pintura na École des Beaux-Arts e na Académie Julien, onde fez
uma exposição em 1910.
De volta aos
Estados Unidos, depois de Mary Haskell ter recusado seu pedido
de casamento, mudou-se para Nova lorque e trabalhou como
pintor de retratos. Fazia exposições regularmente, e um livro
com seus desenhos foi publicado. Em 1912, a publicação de sua
novela Broken Wings rendeu-lhe uma correspondência
permanente com May Ziadah, uma jovem libanesa que vivia no
Cairo. Mary Haskell encorajou-o a escrever em inglês e, em
1915, apareceu um poema, Pie Perfect World,
seguido do primeiro livro em inglês, Pie Madman, em
1918. Durante este tempo, continuou a escrever em árabe e a
trabalhar como artista.
Em 1920, Gibran
tomou-se um dos fundadores de uma sociedade literária chamada
Arrabitali ou O Laço da Pena. Sua carreira como
pintor e escritor florescia, mas estava com problemas
cardíacos e começou a beber muito para mitigar as dores no
coração. Era convidado com frcqtiência a discursar para
congregações de igrejas liberais.
Em 1922, foi
inaugurada uma exposição de seus desenhos a bico de pena e
aquarelas e, em 1923, foi publicada sua obra-prima, O
Profeta. Foi um sucesso imediato e as vendas nunca caíram.
Publicou vários outros trabalhos em inglês e em árabe, sendo o
mais notável Jesus, Filho do Homem (1928), antes de
morrer de insuficiência hepática e tuberculose incipiente em
10 de abril de 1931. Gibran nunca perdeu a paixão pelo Líbano,
sua terra natal, onde foi enterrado e onde é considerado uma
lenda.
Fonte: O Profeta -
Gibran Khalil Gibran, Editora L&PM - 2001
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