Esta
Vida
Um sábio me
dizia: esta existência,
não vale a
angústia de viver.
A ciência,
se
fôssemos eternos, num transporte
de desespero
inventaria a morte.
Uma célula
orgânica aparece
no infinito do
tempo.
E vibra e
cresce
e se desdobra
e estala num segundo.
Homem, eis o
que somos neste mundo.
Assim falou-me
o sábio e eu comecei a ver
dentro da
própria morte, o encanto de morrer.
Um monge me
dizia: ó mocidade,
és relâmpago
ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo
anda sempre e não repousa;
esta vida não
vale grande coisa.
Uma mulher que
chora, um berço a um canto;
o riso, às
vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o
mundo, a luta que intimida,
quadro círios
acesos : eis a vida
Isto me disse
o monge e eu continuei a ver
dentro da
própria morte, o encanto de morrer.
Um pobre me
dizia: para o pobre
a vida, é o
pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não
creio nesta fantasia.
Deus me deu
fome e sede a cada dia
mas nunca me
deu pão, nem me deu água.
Deu-me a
vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de
porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta
vida: um pão envenenado.
Assim falou-me
o pobre e eu continuei a ver,
dentro da
própria morte, o encanto de morrer.
Uma mulher me
disse: vem comigo!
Fecha os olhos
e sonha, meu amigo.
Sonha um lar,
uma doce companheira
que queiras
muito e que também te queira.
No telhado, um
penacho de fumaça.
Cortinas muito
brancas na vidraça
Um canário que
canta na gaiola.
Que linda a
vida lá por dentro rola!
Pela primeira
vez eu comecei a ver,
dentro da
própria vida, o encanto de viver.
Nós -
I
Fico -
deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes
gerânios encarnados,
que na janela
vivem debruçados,
vão morrer
debruçados na janela.
E o piano, o
teu canário tagarela,
a lâmpada, o
divã, os cortinados:
- "Que é feito
dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos
dirão: - "Que é feito dela?"
Parte! E se,
olhando atrás, da extrema curva
da estrada,
vires, esbatida e turva,
tremer a
alvura dos cabelos meus;
irás pensando,
pelo teu caminho,
que essa pobre
cabeça de velhinho
é um lenço
branco que te diz adeus!
Nós
- II
Nessa tua
janela, solitário,
entre as grades
douradas da gaiola,
teu amigo de
exílio, teu canário
canta, e eu sei
que esse canto te consola.
E, lá na rua, o
povo tumultuário
ouvindo o canto
que daqui se evola
crê que é o
nosso romance extraordinário
que naquela
canção se desenrola.
Mas, cedo ou
tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio,
na gaiola fria,
o teu canário
que cantava tanto.
E eu chorarei.
Teu pobre confidente
ensinou-me a
chorar tão docemente,
que todo mundo
pensará que eu canto.
Nós
- III
Mas não passou
sem nuvem de tristeza
esse amor que
era toda a tua vida,
em que eu
tinha a existência resumida
e a viva chama
de minha alma, acesa.
Nem lemos sem
vislumbre de incerteza
a página do
amor, lida e relida,
mas
pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia
de engano e de surpresa,
Não. Quantas
vezes ocultei a minha
dor num
sorriso! Quanta vez sentiste
parar,
medroso, o coração de gelo!
- É que nossa
alma às vezes adivinha
que perder um
amor não é tão triste
como pensar
que havemos de perdê-lo.
Nós - IV
Quando as
folhas caírem nos caminhos,
ao
sentimentalismo do sol poente,
nós dois
iremos vagarosamente,
de braços
dados, como dois velhinhos,
e que dirá de
nós toda essa gente,
quando
passarmos mudos e juntinhos?
- "Como se
amaram esses coitadinhos!
como ela vai,
como ele vai contente!"
E por onde eu
passar e tu passares,
hão de
seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se
as flores nos barrancos...
E por nós, na
tristeza do sol posto,
hão de falar
as rugas do meu rosto
hão de falar
os teus cabelos brancos.
Prece a Anchieta
Santo: erguesses
a cruz na selva escura;
Herói:
plantasses nossa velha aldeia;
Mestre:
ensinasses a doutrina pura;
Poeta:
escrevesses versos sobre a areia!
Golpeia a cruz a
foice inculta e dura;
Invade a vila
multidão alheia;
Morre a voz
santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a
onda espumejante e cheia...
Santo, herói,
mestre e poeta: — Pela glória
que destes a
esta Terra e a sua História,
Pela dor que
sofremos sempre nós.
Pelo bem que
quisesses a este povo,
O novo Cristo
deste Mundo Novo,
Padre José de
Anchieta, orai por nós!
Flor
do Asfalto
Flor do
asfalto, encantada flor de seda,
sugestão de um
crepúsculo de outono,
de uma folha
que cai, tonta de sono,
riscando a
solidão de uma alameda...
Trazes nos
olhos a melancolia
das longas
perspectivas paralelas,
das avenidas
outonais, daquelas
ruas cheias de
folhas amarelas
sob um
silêncio de tapeçaria...
Em tua voz
nervosa tumultua
essa voz de
folhagens desbotadas,
quando choram
ao longo das calçadas,
simétricas,
iguais e abandonadas,
as árvores
tristíssimas da rua!
Flor da
cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa
que lembra folhas mortas,
sombras de pôr
de sol, árvores tortas,
pela rua
calada em que recortas
tua silhueta
extravagante e triste...
Flor de
volúpia, flor de mocidade,
teu vulto,
penetrante como um gume,
passa e,
passando, como que resume
no olhar, na
voz, no gesto e no perfume,
a vida
singular desta cidade!
O Idílio
Suave
Chegas. Vens
tão ligeira
e és tão
ansiosamente esperada, que enfim,
nem te
sentindo o passo e já te tendo inteira,
completamente
em mim,
quando, toda
Watteau, silenciosa, apareces,
é como se não
viesses.
Vens... E
ficas tão perto
de mim, e tão
diluída em minha solidão,
que eu me
sinto sozinho e acho imenso e deserto
e vazio o
salão...
E, sem te
ouvir nem ver, arde-me em febre a face,
como se eu te
esperasse!
Partes. Mas é
tão pouco
o que de ti se
vai que ainda te vejo o arfar
do seio, e o
teu cabelo, e o teu vestido louco,
e a carícia do
olhar,
e a tua boca
em flor a dizer-me doidices,
como se não
partisses!
Indiferença
Hoje,
voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo. E eu,
baixo os meus olhos se te avisto.
E assim
fazemos, como se com isto,
pudéssemos
varrer nosso passado.
Passo
esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada,
esquecida de que existo.
Como se nunca
me tivesses visto,
como se eu
sempre não te houvesse amado
Mas, se às
vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando
passo, teu olhar me alcança
se meus olhos
te alcançam quando vais.
Ah! Só Deus
sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos
sempre a pálida lembrança.
Daqueles
tempos que não voltam mais!
Canção do Expedicionário
Você sabe de
onde eu venho?
Venho do
morro, do engenho,
das selvas,
dos cafezais,
da choupana
onde um é pouco,
dois é bom,
três é demais.
Venho das
praias sedosas,
das montanhas
alterosas,
do pampa, do
seringal,
das margens
crespas dos rios,
dos verdes
mares bravios,
de minha terra
natal.
Por mais
terras que eu percorra,
não permita
Deus que eu morra
sem que eu
volte para lá
sem que leve
por divisa
esse "V" que
simboliza
a vitória que
virá:
Nossa Vitória
final,
que é a mira
do meu fuzil,
a ração do meu
bornal,
a água do meu
cantil,
as asas do meu
ideal,
a glória do
meu Brasil!
Eu venho da
minha terra,
da casa branca
da serra
e do luar do
sertão;
venho da minha
Maria
cujo nome
principia
na palma da
minha mão.
Braços mornos
de Moema,
lábios de mel
de Iracema
estendidos
para mim!
Ó minha terra
querida
da Senhora
Aparecida
e do Senhor do
Bonfim!
Você sabe de
onde eu venho?
É de uma
pátria que eu tenho
no bojo do meu
violão;
que de viver
em meu peito
foi até
tomando um jeito
de um enorme
coração.
Deixei lá
atrás meu terreiro
meu limão meu
limoeiro,
meu pé de
jacarandá,
minha casa
pequenina
lá no alto da
colina
onde canta o
sabiá.
Venho de além
desse monte
que ainda
azula no horizonte,
onde o nosso
amor nasceu;
do rancho que
tinha ao lado
um coqueiro
que, coitado,
de saudade já
morreu.
Venho do verde
mais belo,
do mais
dourado amarelo,
do azul mais
cheio de luz,
cheio de
estrelas prateadas
que se
ajoelham, deslumbradas.
Essa que eu Hei de Amar
Essa que eu
hei de amar perdidamente um dia
será tão
loura, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu
pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer luz e
calor a essa alma escura e fria.
E quando ela
passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de
acordar no coração, que vela…
E ela irá como
o sol, e eu irei atrás dela
como sombra
feliz… — Tudo isso eu me dizia,
quando alguém
me chamou. Olhei: um vulto louro,
e claro, e
vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me
dizia adeus, como um sol triste…
E falou-me de
longe: "Eu passei a teu lado,
mas ias tão
perdido em teu sonho dourado,
meu pobre
sonhador, que nem sequer me viste!"
Haicai
Infância
Um gosto de
amora
comida com
sol. A vida
chamava-se
"Agora".
Cigarra
Diamante.
Vidraça.
Arisca, áspera
asa risca
o ar. E
brilha. E passa.
A Rua de Rimas
A rua que eu imagino,
desde menino, para o meu destino pequenino é uma rua de poeta,
reta, quieta, discreta, direita, estreita, bem feita,
perfeita, com pregões matinais de jornais, aventais nos
portais, animais e varais nos quintais; e acácias paralelas,
todas elas belas, singelas, amarelas, douradas, descabeladas,
debruçadas como namoradas para as calçadas; e um passo, de
espaço a espaço, no mormaço de aço baço e lasso; e algum piano
provinciano, quotidiano, desumano, mas brando e brando,
soltando, de vez em quando, na luz rara de opala de uma sala
uma escala clara que embala; e, no ar de uma tarde que arde, o
alarde das crianças do arrabalde; e de noite, no ócio
capadócio, junto aos lampiões espiões, os bordões dos
violões; e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata que
mata...); e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso
silêncio... A rua que eu imagino, desde menino, para o meu
destino pequenino é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer
uma mulher que bem me quer é uma rua, como todas as ruas, com
suas duas calças nuas, correndo paralelamente, como a sorte
diferente de toda gente, para a frente, para o infinito; mas
uma rua que tem escrito um nome bonito, bendito, que sempre
repito e que rima com mocidade, liberdade, tranqüilidade: RUA
DA FELICIDADE...
A Hóspede
Não precisa bater
quando chegares. Toma a chave de ferro que
encontrares sobre o pilar, ao lado da cancela, e abre com
ela a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a
poltrona, o livro, a rosa, o cântaro de barro e o pão de
trigo.
O cão
amigo pousará nos teus joelhos a cabeça. Deixa que a
noite, vagarosa, desça. Cheiram a relva e sol, na arca e nos
quartos, os linhos fartos, e cheira a lar o azeite da
candeia.
Dorme. Sonha.
Desperta. Da colméia nasce a manhã de mel contra a
janela. Fecha a cancela e vai. Há sol nos frutos dos
pomares.
Não olhes para trás
quando tomares o caminho sonâmbulo que desce. Caminha - e
esquece.
Cinema
Na grande sala
escura, só teus olhos existem para os meus: olhos cor de
romance e de aventura, longos como um adeus.
Só teus olhos:
nenhuma atitude, nenhum traço, nenhum gesto persiste sob
o vácuo de uma grande sombra comum.
E os teus
olhos de opala, exagerados na penumbra, são para os meus
olhos soltos pela sala, uma dupla obsessão.
Um cordão de
silhuetas escapa desses olhos que, afinal, são dois
carvões pondo figuras pretas sobre um muro de cal.
E uma gente
esquisita, em torno deles, como de dois sóis, é um
sistema de estrelas que gravita: — são bandidos e heróis;
são lágrimas e
risos; são mulheres, com lábios de bombons; bobos
gordos, alegres como guizos; homens maus e homens bons...
É a vida, a
grande vida que um deus artificial gera e conduz num
mundo branco e preto, e que trepida nos seus dedos de luz...
Branca de Neve
Eu te guardo no fundo
da memória, como guardo, num livro, aquela flor que marca
a tua delicada história, Branca de Neve, meu primeiro
amor.
Amei-te... E amei-te, figurinha aluada, porque
nunca exististe e porque sei que o sonho é tudo — e tudo mais
é nada... E és o primeiro sonho que sonhei.
Hoje ainda
beijo, comovido e tonto, a velha mão que um dia me
mostrou aquela estampa do teu lindo conto, princesinha
encantada de Perrault!
Que fui eu afinal? — Um pobre
louco que andou, na vida, procurando em vão sua Branca de
Neve que era um pouco do sonho e um pouco de
recordação...
Procurei-a. Meus olhos esperaram vê-la
passar com flores e galões, tal qual passaste quando te
levaram, no ataúde de vidro, os sete anões.
E
encontrei a Saudade: ia alva e leve na urna do passado que,
afinal, é como o teu caixão, Branca de Neve: é um ataúde
todo de cristal.
E parecia morta: mas vivia. Corado do
meu beijo que a roçou, despertei-a do sono em que
dormia, como o Príncipe Azul te despertou.
Sinto-me
agora mais criança ainda do que naqueles tempos em que
li a tua história mentirosa e linda; pois quase chego a
acreditar em ti.
É que o meu caso (estranha
extravagância!) é a tua história sem tirar nem pôr... E
esta velhice é uma segunda infância, Branca de Neve, meu
primeiro amor.
Cubismo
Um Arlequim feito de
cubos equilibrados: trinta losangos arranjados sobre
dois tubos. — Ele talvez jogue xadrez...
No halo,
que a lâmpada tranquila rasga, de cima, esse Arlequim de
pantomima oscila, oscila, e vem... e vai... e quase
cai...
Mas entra alguém: é uma silhueta que espia e
passa. Seu riso é um fruto sob a graça da mosca preta —
É uma mulher como qualquer...
Um gesto só lânguido e
doce: e, num instante, Dom Arlequim, o
petulante, esfarelou-se... — Todo Arlequim é mesmo
assim...
Humorismo
Sossego macio
da tarde. Um sol cansado passa pelo rosto suado uma
nuvenzinha alva como um lenço para enxugar as primeiras
estrelas. Silêncio.
E o sol vai caminhando sobre os
montes tranqüilos vai cochilando. E de repente tropeça e
cai redondamente sob a pateada dos sapos e a vaia dos
grilos.
Natureza Morta
Na sala
fechada ao sol seco do meio-dia sobre a ingenuidade da
faiança portuguesa os frutos cheiram violentamente e a toalha
é fria e alva na mesa.
Há um gosto áspero de ananases
e um brilho fosco de uvaias flácidas e um aroma
adstringente de cajus, de pálidas carambolas de âmbar
desbotado e um estalo oco de jaboticabas de polpa esticada e
um fogo bravo de tangerinas.
E sobre esse jogo de
cores, gostos e perfumes a sala toma a transparência abafada
de uma redoma.
Velocidade
Não se lembram
do Gigante das Botas de Sete Léguas? Lá vai ele: vai varando,
no seu vôo de asas cegas, as distâncias... E
dispara, nunca pára, nem repara para os lados, para
frente, para trás...
Vai como um pária...
E vai
levando um novelo embaraçado de
fitas: fitas azuis, brancas, verdes, amarelas... imprevistas...
Vai
varando o vento: — e o vento, ventando cada vez
mais, desembaraça o novelo, penteando com dedos de ar o
feixe fino de
riscas, tiras, fitas, faixas, listas... E
estira-as, puxa-as, estica-as, espicha-as bem para
trás: E as cores retesas dançam, sobem, descem
de-va-gar paralelamente, paralelamente horizontais, sobre
a cabeça espantada do Pequeno
Polegar...
Guilherme de
Almeida
(1890-1969)
Guilherme de
Almeida nasceu na cidade de Campinas/SP em 24 de
julho de 1890 e faleceu em 11 de julho de 1969, na cidade de
São Paulo/SP.
Foi poeta, jornalista,tradutor e
ensaísta. De formação parnasianosimbolista -, integrou o
movimento modernista como um dos poetas mais versáteis e
populares de seu tempo.
Sua temática é sentimental: "Todas as
coisas são mais reais, são mais humanas: não há borboletas
azuis nem rolas líricas."
Publicou
diversos livros de poesia, entre os quais, Nós (1917),
A dança das horas (1919), Meu (1925),
Raça (1925), Cartas do meu amor (1941), Toda
a poesia (6 volumes, 1952, 2.ª edição em 7 volumes, 1955)
e A rua (1962).
Fonte:
Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft
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