Flora Frühling in den Gärten der Villa Borghese -  (1877)  - Alma Tadema 


 
 

 

 

Esta Vida

 

Um sábio me dizia: esta existência,

não vale a angústia de viver.

A ciência, se fôssemos eternos, num transporte

de desespero inventaria a morte.

Uma célula orgânica aparece

no infinito do tempo.

E vibra e cresce

e se desdobra e estala num segundo.

Homem, eis o que somos neste mundo.

 

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver

dentro da própria morte, o encanto de morrer.

 

Um monge me dizia: ó mocidade,

és relâmpago ao pé da eternidade!

Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;

esta vida não vale grande coisa.

Uma mulher que chora, um berço a um canto;

o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.

Depois o mundo, a luta que intimida,

quadro círios acesos : eis a vida

 

Isto me disse o monge e eu continuei a ver

dentro da própria morte, o encanto de morrer.

 

Um pobre me dizia: para o pobre

a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.

Deus, eu não creio nesta fantasia.

Deus me deu fome e sede a cada dia

mas nunca me deu pão, nem me deu água.

Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa

de andar de porta em porta, esfarrapado.

Deu-me esta vida: um pão envenenado.

 

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,

dentro da própria morte, o encanto de morrer.

 

Uma mulher me disse: vem comigo!

Fecha os olhos e sonha, meu amigo.

Sonha um lar, uma doce companheira

que queiras muito e que também te queira.

No telhado, um penacho de fumaça.

Cortinas muito brancas na vidraça

Um canário que canta na gaiola.

Que linda a vida lá por dentro rola!

 

Pela primeira vez eu comecei a ver,

dentro da própria vida, o encanto de viver.

 

 

 

Nós - I

 

 

Fico - deixas-me velho. Moça e bela,

partes. Estes gerânios encarnados,

que na janela vivem debruçados,

vão morrer debruçados na janela.

 

E o piano, o teu canário tagarela,

a lâmpada, o divã, os cortinados:

- "Que é feito dela?" - indagarão - coitados!

E os amigos dirão: - "Que é feito dela?"

 

Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva

da estrada, vires, esbatida e turva,

tremer a alvura dos cabelos meus;

 

irás pensando, pelo teu caminho,

que essa pobre cabeça de velhinho

é um lenço branco que te diz adeus!

 

 

 

 

Nós - II

 

 

Nessa tua janela, solitário,

entre as grades douradas da gaiola,

teu amigo de exílio, teu canário

canta, e eu sei que esse canto te consola.

 

E, lá na rua, o povo tumultuário

ouvindo o canto que daqui se evola

crê que é o nosso romance extraordinário

que naquela canção se desenrola.

 

Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,

calado e frio, na gaiola fria,

o teu canário que cantava tanto.

 

E eu chorarei. Teu pobre confidente

ensinou-me a chorar tão docemente,

que todo mundo pensará que eu canto.

 

 

 

Nós - III
 

 

Mas não passou sem nuvem de tristeza

esse amor que era toda a tua vida,

em que eu tinha a existência resumida

e a viva chama de minha alma, acesa.

 

Nem lemos sem vislumbre de incerteza

a página do amor, lida e relida,

mas pouquíssimas vezes entendida,

sempre cheia de engano e de surpresa,

 

Não. Quantas vezes ocultei a minha

dor num sorriso! Quanta vez sentiste

parar, medroso, o coração de gelo!

 

- É que nossa alma às vezes adivinha

que perder um amor não é tão triste

como pensar que havemos de perdê-lo.

 

 

Nós - IV

 

 

Quando as folhas caírem nos caminhos,

ao sentimentalismo do sol poente,

nós dois iremos vagarosamente,

de braços dados, como dois velhinhos,

 

e que dirá de nós toda essa gente,

quando passarmos mudos e juntinhos?

- "Como se amaram esses coitadinhos!

como ela vai, como ele vai contente!"

 

E por onde eu passar e tu passares,

hão de seguir-nos todos os olhares

e debruçar-se as flores nos barrancos...

 

E por nós, na tristeza do sol posto,

hão de falar as rugas do meu rosto

hão de falar os teus cabelos brancos.

 

 

 

Prece a Anchieta

 

 

Santo: erguesses a cruz na selva escura;

Herói: plantasses nossa velha aldeia;

Mestre: ensinasses a doutrina pura;

Poeta: escrevesses versos sobre a areia!

 

Golpeia a cruz a foice inculta e dura;

Invade a vila multidão alheia;

Morre a voz santa entre a distância e a altura;

Apaga o poema a onda espumejante e cheia...

 

Santo, herói, mestre e poeta: — Pela glória

que destes a esta Terra e a sua História,

Pela dor que sofremos sempre nós.

 

Pelo bem que quisesses a este povo,

O novo Cristo deste Mundo Novo,

Padre José de Anchieta, orai por nós!

 

 

Flor do Asfalto

 

 

Flor do asfalto, encantada flor de seda,

sugestão de um crepúsculo de outono,

de uma folha que cai, tonta de sono,

riscando a solidão de uma alameda...

 

Trazes nos olhos a melancolia

das longas perspectivas paralelas,

das avenidas outonais, daquelas

ruas cheias de folhas amarelas

sob um silêncio de tapeçaria...

 

Em tua voz nervosa tumultua

essa voz de folhagens desbotadas,

quando choram ao longo das calçadas,

simétricas, iguais e abandonadas,

as árvores tristíssimas da rua!

 

Flor da cidade, em teu perfume existe

Qualquer coisa que lembra folhas mortas,

sombras de pôr de sol, árvores tortas,

pela rua calada em que recortas

tua silhueta extravagante e triste...

 

Flor de volúpia, flor de mocidade,

teu vulto, penetrante como um gume,

passa e, passando, como que resume

no olhar, na voz, no gesto e no perfume,

a vida singular desta cidade!

 

 

 

 

O Idílio Suave

 

 

Chegas. Vens tão ligeira

e és tão ansiosamente esperada, que enfim,

nem te sentindo o passo e já te tendo inteira,

completamente em mim,

quando, toda Watteau, silenciosa, apareces,

é como se não viesses.

 

Vens... E ficas tão perto

de mim, e tão diluída em minha solidão,

que eu me sinto sozinho e acho imenso e deserto

e vazio o salão...

E, sem te ouvir nem ver, arde-me em febre a face,

como se eu te esperasse!

 

Partes. Mas é tão pouco

o que de ti se vai que ainda te vejo o arfar

do seio, e o teu cabelo, e o teu vestido louco,

e a carícia do olhar,

e a tua boca em flor a dizer-me doidices,

como se não partisses!

 

 

 

Indiferença

 

 

Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado

passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto.

E assim fazemos, como se com isto,

pudéssemos varrer nosso passado.

 

Passo esquecido de te olhar, coitado!

Vais, coitada, esquecida de que existo.

Como se nunca me tivesses visto,

como se eu sempre não te houvesse amado

 

Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,

se quando passo, teu olhar me alcança

se meus olhos te alcançam quando vais.

 

Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.

Volta-nos sempre a pálida lembrança.

Daqueles tempos que não voltam mais!

 

 

 

 

Canção do Expedicionário

 

 

Você sabe de onde eu venho?

Venho do morro, do engenho,

das selvas, dos cafezais,

da choupana onde um é pouco,

dois é bom, três é demais.

 

Venho das praias sedosas,

das montanhas alterosas,

do pampa, do seringal,

das margens crespas dos rios,

dos verdes mares bravios,

de minha terra natal.

 

Por mais terras que eu percorra,

não permita Deus que eu morra

sem que eu volte para lá

sem que leve por divisa

esse "V" que simboliza

a vitória que virá:

 

Nossa Vitória final,

que é a mira do meu fuzil,

a ração do meu bornal,

a água do meu cantil,

as asas do meu ideal,

a glória do meu Brasil!

 

Eu venho da minha terra,

da casa branca da serra

e do luar do sertão;

venho da minha Maria

cujo nome principia

na palma da minha mão.

 

Braços mornos de Moema,

lábios de mel de Iracema

estendidos para mim!

Ó minha terra querida

da Senhora Aparecida

e do Senhor do Bonfim!

 

Você sabe de onde eu venho?

É de uma pátria que eu tenho

no bojo do meu violão;

que de viver em meu peito

foi até tomando um jeito

de um enorme coração.

 

Deixei lá atrás meu terreiro

meu limão meu limoeiro,

meu pé de jacarandá,

minha casa pequenina

lá no alto da colina

onde canta o sabiá.

 

Venho de além desse monte

que ainda azula no horizonte,

onde o nosso amor nasceu;

do rancho que tinha ao lado

um coqueiro que, coitado,

de saudade já morreu.

 

Venho do verde mais belo,

do mais dourado amarelo,

do azul mais cheio de luz,

cheio de estrelas prateadas

que se ajoelham, deslumbradas.

 

 

 

Essa que eu Hei de Amar

 

 

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia

será tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,

que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,

trazer luz e calor a essa alma escura e fria.

 

E quando ela passar, tudo o que eu não sentia

da vida há de acordar no coração, que vela…

E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela

como sombra feliz… — Tudo isso eu me dizia,

 

quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,

e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro

do poente, me dizia adeus, como um sol triste…

 

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,

mas ias tão perdido em teu sonho dourado,

meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!"

 

 

 

Haicai

 

Infância

Um gosto de amora

comida com sol. A vida

chamava-se "Agora".

 

Cigarra

Diamante. Vidraça.

Arisca, áspera asa risca

o ar. E brilha. E passa.

 

 

A Rua de Rimas

 

A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, todas elas belas, singelas, amarelas,
douradas, descabeladas, debruçadas como namoradas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de aço baço e lasso;
e algum piano provinciano, quotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em quando,
na luz rara de opala de uma sala uma escala clara que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos lampiões espiões, os bordões dos violões;
e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata que mata...);
e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso silêncio...
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer uma mulher que bem me quer
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas calças nuas,
correndo paralelamente, como a sorte diferente de toda gente, para a frente,
para o infinito; mas uma rua que tem escrito um nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranqüilidade: RUA DA FELICIDADE...

 

 

A Hóspede

 

Não precisa bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.

Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.

O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram a relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.

Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.

Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha - e esquece.

 

 

Cinema

 

Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.

E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
— são bandidos e heróis;

são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...

É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...

 

 

Branca de Neve

 

Eu te guardo no fundo da memória,
como guardo, num livro, aquela flor
que marca a tua delicada história,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

Amei-te... E amei-te, figurinha aluada,
porque nunca exististe e porque sei
que o sonho é tudo — e tudo mais é nada...
E és o primeiro sonho que sonhei.

Hoje ainda beijo, comovido e tonto,
a velha mão que um dia me mostrou
aquela estampa do teu lindo conto,
princesinha encantada de Perrault!

Que fui eu afinal? — Um pobre louco
que andou, na vida, procurando em vão
sua Branca de Neve que era um pouco
do sonho e um pouco de recordação...

Procurei-a. Meus olhos esperaram
vê-la passar com flores e galões,
tal qual passaste quando te levaram,
no ataúde de vidro, os sete anões.

E encontrei a Saudade: ia alva e leve
na urna do passado que, afinal,
é como o teu caixão, Branca de Neve:
é um ataúde todo de cristal.

E parecia morta: mas vivia.
Corado do meu beijo que a roçou,
despertei-a do sono em que dormia,
como o Príncipe Azul te despertou.

Sinto-me agora mais criança ainda
do que naqueles tempos em que li
a tua história mentirosa e linda;
pois quase chego a acreditar em ti.

É que o meu caso (estranha extravagância!)
é a tua história sem tirar nem pôr...
E esta velhice é uma segunda infância,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

 

 

Cubismo

 

Um Arlequim feito de cubos
equilibrados:
trinta losangos arranjados
sobre dois tubos.
— Ele talvez
jogue xadrez...

No halo, que a lâmpada tranquila
rasga, de cima,
esse Arlequim de pantomima
oscila, oscila,
e vem... e vai...
e quase cai...

Mas entra alguém: é uma silhueta
que espia e passa.
Seu riso é um fruto sob a graça
da mosca preta
— É uma mulher
como qualquer...

Um gesto só lânguido e doce:
e, num instante,
Dom Arlequim, o petulante,
esfarelou-se...
— Todo Arlequim
é mesmo assim...

 

 

Humorismo

 

Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.

 

 

Natureza Morta

 

 

Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente e a toalha é fria
e alva na mesa.

Há um gosto áspero de ananases e um brilho fosco
de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado e um estalo oco
de jaboticabas de polpa esticada e um fogo
bravo de tangerinas.

E sobre esse jogo
de cores, gostos e perfumes a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.

 

 

Velocidade

 

Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?
Lá vai ele: vai varando, no seu vôo de asas cegas,
as distâncias...
E dispara,
nunca pára,
nem repara
para os lados,
para frente,
para trás...

Vai como um pária...

E vai levando um novelo embaraçado de fitas:
fitas
azuis,
brancas,
verdes,
amarelas...
imprevistas...

Vai varando o vento: — e o vento, ventando cada vez mais,
desembaraça o novelo, penteando com dedos de ar
o feixe fino de riscas,
tiras,
fitas,
faixas,
listas...
E estira-as,
puxa-as,
estica-as,
espicha-as bem para trás:
E as cores retesas dançam, sobem, descem de-va-gar
paralelamente,
paralelamente
horizontais,
sobre a cabeça espantada do Pequeno Polegar...

 


 

 

Guilherme de Almeida

(1890-1969)

 

Guilherme de Almeida nasceu na cidade de Campinas/SP em 24 de julho de 1890 e faleceu em 11 de julho de 1969, na cidade de São Paulo/SP.

Foi poeta, jornalista,tradutor e ensaísta. De formação parnasianosimbolista -, integrou o movimento modernista como um dos poetas mais versáteis e populares de seu tempo.

Sua temática é sentimental: "Todas as coisas são mais reais, são mais humanas: não há borboletas azuis nem rolas líricas."

Publicou diversos livros de poesia, entre os quais, Nós (1917), A dança das horas (1919), Meu (1925), Raça (1925), Cartas do meu amor (1941), Toda a poesia (6 volumes, 1952, 2.ª edição em 7 volumes, 1955) e A rua (1962).

 

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft


 

 

 

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