Da Perseverança

Michel de Montaigne

 

Perseverança: Diz Montaigne, o que significa tenacidade, e também perseverança, firmeza de ânimo.

 

A lei da resolução e da perseverança não implica em que não devamos nos precaver, na medida de nossas forças, contra os males e inconvenientes que nos podem ameaçar, nem deixar de recear que nos surpreendam. Muito pelo contrário, todo meio honesto de evitar um mal é não somente lícito mas também louvável. A perseverança consiste em suportar com resignação os incômodos para os quais não temos remédio. Por isso não há movimento de agilidade corporal ou manejo de armas que devamos achar ruins desde que sirvam para defender-nos dos golpes que nos assestam.

Em muitas nações belicosas era a fuga um dos principais métodos de combate e o inimigo ao qual viravam as costas tinha então mais a temer do que quando as viam de frente. E um pouco o que fazem os turcos. Sócrates, segundo Platão, criticava Lachez, o qual assim definia a coragem: "Não recuar diante do inimigo". — Como? dizia Sócrates, há então covardia em vencer o inimigo cedendo-lhe terreno? — E em apoio de suas palavras citava Homero. que louva, em Enéias, a ciência de simular a fuga. A Lachez que, contradizendo-se, reconhecia ser o método praticado pelos citas e em geral por todos os povos que combatem a cavalo, ele assinala ainda os guerreiros lacedemônios treinados para o combate a pé e que, na jornada de Platéia, não podendo abrir brecha na falange dos persas, tiveram a idéia de ceder e recuar, a fim de que, imaginando-os em fuga e nada terem a fazer senão persegui-los, se desagregasse a massa por si mesma, estratagema que lhes deu a vitória. Voltando aos citas, quando Dano marchou contra eles na intenção de subjugá-los, censurou, dizem, a atitude do monarca inimigo que se retirava sem cessar, recusando o combate. Ao que Inatirsez respondeu: que não era por ter medo dele, como não tinha de nenhum outro ser vivo, mas era a maneira de lutar de seu povo, o qual não possuía terras cultivadas, nem casas, nem cidades a defender e que temesse viessem a ser aproveitadas pelo inimigo. Entretanto, se o desejo de Dano, de chegar às vias de fato, fosse grande, que se aproximasse da sepultura dos antepassados dos citas e ali encontraria com quem pelejar à vontade.

Diante do canhão, porém, quando já se está visado, como acontece em certas circunstâncias da guerra, não convém fugir de medo do tiro, tanto mais quanto pela sua rapidez e imprevisibilidade é quase inevitável. Por isso de muito soldado zombaram os companheiros ao vê-lo, nessas ocasiões, erguer a mão ou baixar a cabeça a fim de deter ou evitar o projétil. No entanto, quando da invasão da Provença pelo Imperador Carlos Quinto, o Marquês du Guast, expondo-se fora do abrigo constituído por um moinho durante um reconhecimento diante da cidade de Asles, foi visto pelo Sr. de Bonneval e o senescal d’Azenois, que passeavam pelas arenas. Eles o assinalaram ao Sr. de Villiers, comandante da artilharia, o qual com tamanha precisão regulou a colubnina que se o marquês não tivesse dado um salto para o lado, ao ver acender a peça, fora atingido em cheio. Assim também, anos antes, Lourenço de Médicis. Duque de Urbino. pai da Rainha Catarina, mãe do nosso rei, sitiando Mondolfo, na região do Vicariato, vendo acenderem uma peça apontada em sua direção, abaixou-se. E fez bem, porquanto de outro modo o tiro que lhe raspou a cabeça o teria alcançado no estômago. Em verdade, não creio que tais movimentos se efetuassem em virtude de algum raciocínio, pois como verificar a mira em coisa tão repentina? Muito mais judicioso me parece imaginar que o acaso favoreceu o medo, e que em outras circunstâncias o contrário poderia ocorrer e ir a vítima ao encontro do tiro em vez de evitá-lo. Não posso deixar de tremer quando o ruído do arcabuz soa inopinadamente a meus ouvidos em lugar em que não o espero, e essa mesma impressão eu a percebi igualmente em outras pessoas mais valentes do que eu.

Os estóicos não afirmam que a alma do sábio possa resistir desde Logo às sensações e visões que o surpreendam. Admitem como natural impressionar-se, por exemplo, com um estrondo provindo do céu ou de uma ruína; admitem que pode empalidecer, contrair-se como sob a influência de uma paixão qualquer, mas que ele deve conservar intata sua lucidez, sem que se lhe altere a razão, de maneira a não ceder ante o terror e o sofrimento. Quem não é sábio conduz-se do mesmo modo quanto à primeira parte, mas muito diversamente quanto à segunda: a impressão da emoção não será nele apenas superficial; penetrará até a sede da razão, infetando-a e a corrompendo. E será com essa faculdade assim viciada que julgará e se conduzirá.

"Chora, mas seu coração continua inabalável." (pensamento de Virgílio). O sábio dos peripatéticos não permanece insensível às emoções, mas as modera.

 

Fonte: Ensaios de Michel Eyquem de Montaigne - Capítulo XII - Livro I

 

 

Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), escritor francês que introduziu o ensaio como forma literária. Os três tomos de seus Ensaios, que abrangem um amplo leque de temas, caracterizam-se pelo estilo discursivo, pelo tom coloquial e pelo uso de numerosas citações de autores clássicos.

Observava a vida com ceticismo filosófico e destacou as contradições e incoerências inerentes à natureza e à conduta humana. O mais extenso de seus ensaios, Apologia de Raimundo de Sabunde, é um estudo da capacidade racional e das aspirações religiosas do ser humano.

Fonte: Enciclopédia Encarta 2000 - Microsoft