Meus Medos

 

 

 

Formávamos um triângulo escaleno, eu, o açougueiro e sua mulher Helena. Um triângulo com lados desiguais.

Eu, pirralho, franzino e audacioso; o açougueiro, forte e bravo; Helena, linda e tentadora.

Éramos vizinhos, as nossas casas ficavam uma ao lado da outra, separadas por um grande espaço, onde tinha vegetação rasteira e alguns pés de romã e outros de limões, apenas.

Devido ao pequeno tamanho da cidade em que morávamos, difícil era manter algum segredo por muito tempo. Ainda mais um segredo que não era segredo: o meu encantamento por Helena. Já o tinha contado para a turma do Grupo Escolar em que estudava, o que significava nos dias atuais, anunciar no Jornal Nacional, com destaque no Fantástico.

No mínimo, duas vezes por semana meu pai maliciosamente recomendava-me, que depois da aula, eu passasse pelo açougue e fizesse umas compras.

Sem conseguir encarar o açougueiro, com impaciência pedia-lhe que pesasse um pouco de bife. Quando então, ele com olhar fixo em meus olhos, perguntava-me que tipo de carne queria. Respondia-lhe gaguejante: qualquer uma. Ora, --- dizia ele --- qualquer uma não serve para bife!

Para mim naquele momento, carne era carne, não importava se fosse alcatra, filé mignon ou pescoço.

Diante da minha impossibilidade de escolha, motivada pelo meu nervosismo, percebido pelo comerciante, o próprio encarregava-se de fazê-la. Lá ia o homem bravo e forte, retirar do refrigerador a metade de um bovino, colocando-a em cima do cepo, olhando-me fixamente enquanto afiava com destreza, no mínimo três facas, como se não bastasse uma.

Eu indagava-me intimamente, por que meu pai não se tornava vegetariano, obrigando a família toda a seguir sua nova opção alimentícia? Não importava o fato de sermos gaúchos da campanha. Quanto a mim, tudo bem, trocaria um bife por uma porção de couve, qual a diferença?

Com habilidade ímpar, o homem cortava uma porção de bifes em dois padrões: uns grossos e curtos, e outros, finos e longos. Segundo ele, deveriam ser preparados de forma "bem e mal passados", respectivamente.

Ao colocar na balança, repousava a ponta da faca sobre seu prato, prática habitual naqueles tempos em que nem se sonhava que algum dia existiriam o Procon, o Código do Consumidor e outros protetores dos mais fracos.

Confesso que não via nada de errado nisso. Pensando bem, que diferença fazia estar levando para casa, carne de qualidade inferior a paga e vinte por cento menos em peso? O que eu queria era sair logo e inteiro dali!

Ao chegar em casa com o produto da compra, duro era enfrentar o sarcasmo do pai que tudo sabia, e nada falava. O seu silêncio e riso maroto castigavam-me muito.

Eu, apreensivo, olhava pela janela do meu quarto que me dava um ângulo perfeito para ver Helena, linda como nunca, fazendo a lida da casa e sorrindo. Estaria sorrindo para mim ou rindo de mim?

Um dia cansei-me de tudo isso e tomei uma atitude. Resolvi por tudo em pratos limpos. Primeiro conversei com quem me deu a vida; depois, com quem era a minha vida; e finalmente com quem poderia tirar a minha vida.

Então falei para o pai, que me disse: bobagem sua, guri. Depois falei para Helena, que me disse: bobagem sua, guri. Finalmente falei para o açougueiro, que me disse: bobagem sua, guri.

A partir desse momento, deixei de ter medos que só existiam porque eu os alimentava. Passei a ser o companheiro de viagens de Helena. Com freqüencia íamos de manhã cedo visitar seus pais em uma cidadezinha próxima, e voltávamos ao anoitecer. Em outras ocasiões, eu era o auxiliar do açougueiro, fazendo entregas domiciliares. E sobrevivi a tudo isso.

 

 

João Ligório é contabilista e escritor.