O talento de cada um

 

 

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela, que arde no eterno azul, como uma eterna vela!".

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar-te o transparente lume, que, da grega coluna à gótica janela, contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela".

Mas a lua, fitando o sol com azedume: "Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela claridade imortal, que toda a luz resume!".

Mas o sol, inclinando a rútila capela: "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta luz e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"...

O texto acima é de Machado de Assis e fala da insatisfação do vaga-lume, da estrela, da Lua e do Sol com o que possuíam e como invejavam o destino e talentos alheios.

É só uma ilustração, mas retrata bem muitas vezes o comportamento humano. Lamentamos por não sabermos cantar, dançar, jogar futebol, andar de bicicleta, cozinhar, da altura, do peso, da cor dos cabelos e dos olhos, como se o que não sabemos (mas que muitas vezes, podemos aprender ou desenvolver) e o que somos (que muitas vezes, não podemos mudar por vontade própria) fossem defeitos ou deficiências.

Imagine se todos tivessem as mesmas habilidades ou gostos? Se todas as mulheres fossem ótimas cozinheiras e péssimas costureiras? Se todos os homens fossem exímios mecânicos e péssimos eletricistas? Se todos as crianças fossem muito comportadas e não fizessem nenhuma travessura? Se todos gostassem de música clássica? Que destino triste teria o mundo!

Por mais simples que sejam as nossas habilidades, são as que temos e por isso, são preciosas. Minha vó paterna foi uma pessoa de vida muito simples, sofrida e sem muitas oportunidades de desenvolvimento pessoal, mas cozinhava esplendorosamente. Sua salada de tomate com cebola bem temperada, acompanhada de arroz bem soltinho e feijão de caldo espesso eram divinos. Era seu talento, simples e maravilhoso. Era tão especial, que o tempo e a sua ausência não deixaram que eu esquecesse o sabor.

Machado de Assis que citei acima, nasceu mulato, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira, tinha saúde frágil, era gago e epilético e perdeu os pais no início de sua infância. Aprendeu francês com um padeiro. Foi e continua sendo um dos maiores escritores que a literatura brasileira e mundial teve conhecimento.

Provavelmente ele não fez lamento de quem era e do que tinha, da sua sorte, nem foi acanhado numa sociedade aristocrata em que conviveu, sabendo valorizar os talentos que tinha.

Nunca seremos plenos em tudo. E nem ignorantes em tudo. Ainda bem que é assim.

 

 

 

Sibele Ligório é contabilista, técnica em informática e acadêmica de Filosofia pela PUC - Campinas. É criadora do site Vida em Poesia.