The Nymphaeum (1878) -   - William Bouguereau

 


 
 

 

 

Arte de Amar
 
 

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.

Não noutra alma.

Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
 
 

 


  
O Último Poema
 
 

Assim eu quereria o meu último poema.

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas

Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume

A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
 
 


  
 

Enquanto a Chuva Cai
 
 

A chuva cai. O ar fica mole . . .

Indistinto . . . ambarino . . . gris . . .

E no monótono matiz

Da névoa enovelada bole

A folhagem como o bailar.

Torvelinhai, torrentes do ar!

Cantai, ó bátega chorosa,

As velhas árias funerais.

Minh'alma sofre e sonha e goza

À cantilena dos beirais.

Meu coração está sedento

De tão ardido pelo pranto.

Dai um brando acompanhamento

À canção do meu desencanto.

Volúpia dos abandonados . . .

Dos sós . . . — ouvir a água escorrer,

Lavando o tédio dos telhados

Que se sentem envelhecer . . .

Ó caro ruído embalador,

Terno como a canção das amas!

Canta as baladas que mais amas,

Para embalar a minha dor!

A chuva cai. A chuva aumenta.

Cai, benfazeja, a bom cair!

Contenta as árvores! Contenta

As sementes que vão abrir!

Eu te bendigo, água que inundas!

Ó água amiga das raízes,

Que na mudez das terras fundas

Às vezes são tão infelizes!

E eu te amo! Quer quando fustigas

Ao sopro mau dos vendavais

As grandes árvores antigas,

Quer quando mansamente cais.
 
 


  
 

Madrigal Melancólica 

 

O que eu adoro em ti

Não é sua beleza

A beleza é em nós que existe

A beleza é um conceito

E a beleza é triste

Não é triste em si

Mas pelo que há nela

De fragilidade e incerteza

O que eu adoro em ti

Não é a tua inteligência

Mas é o espírito sutil

Tão ágil e tão luminoso

Ave solta no céu matinal da montanha

Nem é tua ciência

Do coração dos homens e das coisas

O que eu adoro em ti

Não é a tua graça musical

Sucessiva e renovada a cada momento

Graça aérea como teu próprio momento

Graça que perturba e que satisfaz

O que eu adoro em ti

Não é a mãe que já perdi

E nem meu pai

O que eu adoro em tua natureza

Não é o profundo instinto matinal

Em teu flanco aberto como uma ferida

Nem a tua pureza. Nem a tua impureza

O que adoro em ti lastima-me e consola-me

O que eu adoro em ti é a vida! 

  
 
  
 

   Vou-me Embora pra Pasárgada
 
 

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada 
  
 

 

Teresa
 
 

A primeira vez que vi Teresa

Achei que ela tinha pernas estúpidas

Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo

Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo

(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada

Os céus se misturaram com a terra

E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
 
 

 

 Minha Grande Ternura
  
 

Minha grande ternura

Pelos passarinhos mortos;

Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura

Pelas mulheres que foram meninas bonitas

E ficaram mulheres feias;

Pelas mulheres que foram desejáveis

E deixaram de o ser.

Pelas mulheres que me amaram

E que eu não pude amar.

Minha grande ternura

Pelos poemas que não consegui realizar.

Minha grande ternura

Pelas amadas que

Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura

Pelas gotas de orvalho que

São o único enfeite de um túmulo.
 
 

 

A Morte Absoluta
 
 

Morrer.

Morrer de corpo e de alma.

Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,

A exangue máscara de cera,

Cercada de flores,

Que apodrecerão - felizes! - num dia,

Banhada de lágrimas

Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...

A caminho do céu?

Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,

A lembrança de uma sombra

Em nenhum coração, em nenhum pensamento,

Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente

Que um dia ao lerem o teu nome num papel

Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,

- Sem deixar sequer esse nome.
 
 

 

O Inútil Luar
 
 

É noite. A Lua, ardente e terna,

Verte na solidão sombria

A sua imensa, a sua eterna melancolia . . .

Dormem as sombras na alameda

Ao longo do ermo Piabanha.

E dele um ruído vem de seda Que se amarfanha . . .

No largo, sob os jambolanos,

Procuro a sombra embalsamada.

(Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado. Medita.

Há no seu rosto uma ânsia . . .

Talvez se lembre aqui, coitado!

De sua infância. Ei-lo que saca de um papel . . .

Dobra-o direito, ajusta as pontas,

E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala,

Fala um de compleição raquítica.

Presto atenção ao que ele fala:

— É de política. Adiante uma senhora magra,

Em ampla charpa que a modela,

Lembra uma estátua de Tanagra.

E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:

— "Mamãe não avisou se vinha.

Se ela vier, mando matar uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,

Verte na solidão sombria A sua imensa, a sua eterna Melancolia . . .
 
 

 

A meu Pai doente
 
 

Para onde fores, Pai, para onde fores,

Irei também, trilhando as mesmas ruas.

Tu, para amenizar as dores tuas, Eu, para amenizar as minhas dores!

Que cousa triste! O campo tão sem flores,

E eu tão sem crença e as árvores tão nuas

E tu, gemendo, e o horror de nossas duas

Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?!

Que mão sombria,

Indiferente aos mil tormentos teus

De assim magoar-te sem pesar havia?!

— Seria a mão de Deus?!

Mas Deus enfim, é bom, é justo, e sendo justo, Deus,

Deus não havia de magoar-te assim!

 

 

Manuel Bandeira

(1886-1968)

 

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho ou Manuel Bandeira, poeta e ensaísta brasileiro que nasceu em Recife, Pernambuco.

Fez seus estudos secundários no Rio de Janeiro, no Colégio Pedro II, do qual seria posteriormente professor de literatura. Começou em São Paulo a carreira de engenheiro, que não terminou porque ficou doente de tuberculose, e foi recuperar-se na Suíça. Foi inspetor federal de ensino, professor de literatura latino-americana na Universidade do Brasil. Colaborou com a imprensa, preparou antologias e escreveu sobre crítica literária e história. Na Suíça conheceu o simbolismo e o pós-simbolismo francês, que influíram em seus primeiros livros, Cinzas das horas (1917) e Carnaval (1919).

Desde 1912 começou a usar em sua poesia o verso livre. Participou do modernismo de 1922. Dentro da nova estética, sua primeira obra foi Ritmo dissoluto e Libertinagem (1930), onde começou a inserir motivos e termos prosaicos na literatura. Sua prosa conserva a variedade criadora do parnasianismo e está marcada pela paixão de viver, expressada em forma lírica e intimista.

A presença do biógrafo se manifesta na interiorização de figuras familiares (Profundamente e Irene do céu). As imagens brasileiras aparecem, por exemplo, em Evocação do Recife. Nos livros de sua maturidade reaparece a métrica clássica e popular. Mafuá do malungo (1948) contem jogos onomásticos, dedicatórias rimadas e sátiras políticas. Merecem menção, também, os poemarios Estrela da manhã (1936), Estrela da tarde (1966), Estrela da vida interior (1966). Sua obra em prosa abrange as Crônicas da Província do Brasil (1936), Guia de Ouro Preto (1938), Noções da História da Literatura (1940), Literatura Hispano-americana (1949), Gonçalves Dias (1952), Itinerário de Passárgada (1954) e mais 50 crônicas (1966). Morreu no Rio de Janeiro.

 

Fonte: Enciclopédia Encarta 2000 - Microsoft

 

 

  

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