Arte de Amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua
alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
O Último
Poema
Assim eu quereria o meu último poema.
Que
fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que
fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que
tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A
pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A
paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Enquanto a Chuva Cai
A
chuva cai. O ar fica mole . . .
Indistinto . . . ambarino . . . gris . . .
E
no monótono matiz
Da
névoa enovelada bole
A
folhagem como o bailar.
Torvelinhai, torrentes do ar!
Cantai, ó bátega chorosa,
As
velhas árias funerais.
Minh'alma sofre e sonha e goza
À
cantilena dos beirais.
Meu
coração está sedento
De
tão ardido pelo pranto.
Dai
um brando acompanhamento
À
canção do meu desencanto.
Volúpia dos abandonados . . .
Dos
sós . . . — ouvir a água escorrer,
Lavando o tédio dos telhados
Que
se sentem envelhecer . . .
Ó
caro ruído embalador,
Terno como a canção das amas!
Canta as baladas que mais amas,
Para embalar a minha dor!
A
chuva cai. A chuva aumenta.
Cai, benfazeja, a bom cair!
Contenta as árvores! Contenta
As
sementes que vão abrir!
Eu
te bendigo, água que inundas!
Ó
água amiga das raízes,
Que
na mudez das terras fundas
Às
vezes são tão infelizes!
E
eu te amo! Quer quando fustigas
Ao
sopro mau dos vendavais
As
grandes árvores antigas,
Quer quando mansamente cais.
Madrigal
Melancólica
O
que eu adoro em ti
Não
é sua beleza
A
beleza é em nós que existe
A
beleza é um conceito
E a
beleza é triste
Não
é triste em si
Mas
pelo que há nela
De
fragilidade e incerteza
O
que eu adoro em ti
Não
é a tua inteligência
Mas
é o espírito sutil
Tão
ágil e tão luminoso
Ave
solta no céu matinal da montanha
Nem
é tua ciência
Do
coração dos homens e das coisas
O
que eu adoro em ti
Não
é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz
O
que eu adoro em ti
Não
é a mãe que já perdi
E
nem meu pai
O
que eu adoro em tua natureza
Não
é o profundo instinto matinal
Em
teu flanco aberto como uma ferida
Nem
a tua pureza. Nem a tua impureza
O
que adoro em ti lastima-me e consola-me
O
que eu adoro em ti é a
vida!
Vou-me Embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá
sou amigo do rei
Lá
tenho a mulher que eu quero
Na
cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá
a existência é uma aventura
De
tal modo inconseqüente
Que
Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem
a ser contraparente
Da
nora que eu nunca tive
E
como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E
quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra
me contar as histórias
Que
no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em
Pasárgada tem tudo
É
outra civilização
Tem
um processo seguro
De
impedir a concepção
Tem
telefone automático
Tem
alcalóide à vontade
Tem
prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E
quando eu estiver mais triste
Mas
triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
—
Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na
cama que escolherei
Vou-me embora pra
Pasárgada
Teresa
A
primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do
corpo
(Os
olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo
nascesse)
Da
terceira vez não vi mais nada
Os
céus se misturaram com a terra
E o
espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Minha Grande
Ternura
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E
ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E
deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E
que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São
o único enfeite de um túmulo.
A Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A
exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que
apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A
caminho do céu?
Mas
que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A
lembrança de uma sombra
Em
nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em
nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que
um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
-
Sem deixar sequer esse nome.
O Inútil Luar
É
noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A
sua imensa, a sua eterna melancolia . . .
Dormem as sombras na alameda
Ao
longo do ermo Piabanha.
E
dele um ruído vem de seda Que se amarfanha . . .
No
largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!)
Um
velho senta-se ao meu lado. Medita.
Há
no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado!
De
sua infância. Ei-lo que saca de um papel . . .
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E
pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . .
Com
outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É
de política. Adiante uma senhora magra,
Em
ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E,
junto dela,
Outra a entretém, a conversar:
—
"Mamãe não avisou se vinha.
Se
ela vier, mando matar uma galinha."
E
embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .
A meu Pai doente
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas.
Tu, para amenizar as dores tuas, Eu, para amenizar as
minhas dores!
Que cousa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?!
Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
— Seria a mão de Deus?!
Mas Deus enfim, é bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!
Manuel
Bandeira
(1886-1968)
Manuel Carneiro de Souza Bandeira
Filho ou Manuel
Bandeira, poeta e ensaísta brasileiro
que nasceu em Recife, Pernambuco.
Fez
seus estudos secundários no Rio de Janeiro, no Colégio Pedro
II, do qual seria posteriormente professor de literatura.
Começou em São Paulo a carreira de engenheiro, que não
terminou porque ficou doente de tuberculose, e foi
recuperar-se na Suíça. Foi inspetor federal de ensino,
professor de literatura latino-americana na Universidade do
Brasil. Colaborou com a imprensa, preparou antologias e
escreveu sobre crítica literária e história. Na Suíça conheceu
o simbolismo e o pós-simbolismo francês, que influíram em seus
primeiros livros, Cinzas das horas (1917) e
Carnaval (1919).
Desde
1912 começou a usar em sua poesia o verso livre. Participou do
modernismo de 1922. Dentro da nova estética, sua primeira obra
foi Ritmo dissoluto e Libertinagem (1930), onde começou
a inserir motivos e termos prosaicos na literatura. Sua prosa
conserva a variedade criadora do parnasianismo e está marcada
pela paixão de viver, expressada em forma lírica e
intimista.
A
presença do biógrafo se manifesta na interiorização de figuras
familiares (Profundamente e Irene do céu). As imagens
brasileiras aparecem, por exemplo, em Evocação do
Recife. Nos livros de sua maturidade reaparece a métrica
clássica e popular. Mafuá do malungo (1948) contem
jogos onomásticos, dedicatórias rimadas e sátiras políticas.
Merecem menção, também, os poemarios Estrela da manhã
(1936), Estrela da tarde (1966), Estrela da vida
interior (1966). Sua obra em prosa abrange as Crônicas
da Província do Brasil (1936), Guia de Ouro Preto
(1938), Noções da História da Literatura (1940),
Literatura Hispano-americana (1949), Gonçalves
Dias (1952), Itinerário de Passárgada (1954) e mais
50 crônicas (1966). Morreu no Rio de Janeiro.
Fonte: Enciclopédia Encarta 2000 -
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