Bem
no Fundo
No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria
de ver nossos problemas resolvidos por decreto
a partir desta data, aquela mágoa sem remédio
é considerada nula e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso, maldito seja
que olhas pra trás, lá pra trás não há nada, e nada mais
mas problemas não se resolvem, problemas têm
família grande, e aos domingos saem todos a passear o
problema, sua senhora e outros pequenos
probleminhas.
Apagar-me
Apagar-me
diluir-me desmanchar-me até que depois
de mim de nós de tudo não reste mais que o
charme.
Eu
Eu quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa está por dentro ou está por fora
quem está
por fora
não segura um olhar que demora de dentro de meu
centro este poema me olha
Amor
Bastante
Quando eu vi você tive uma idéia brilhante foi como
se eu olhasse de dentro de um diamante e meu olho
ganhasse mil faces num só instante basta um instante e
você tem amor bastante um bom poema leva anos cinco
jogando bola, mais cinco estudando sânscrito, seis
carregando pedra, nove namorando a vizinha, sete levando
porrada, quatro andando sozinho, três mudando de cidade,
dez trocando de assunto, uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.
Ali
ali só ali se se alice ali se
visse quanto alice viu e não disse se ali ali se
dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem
ali dentro da alice só alice com alice ali se
parece.
Um homem com uma dor
Um homem com uma
dor é muito mais elegante caminha assim de lado
como se chegasse atrasado andasse mais
adiante.
Acordei Bemol
Acordei bemol tudo estava sustenido
sol fazia só não fazia
sentido.
um
bom poema leva anos
cinco jogando bola,
mais
cinco estudando sânscrito,
seis
carregando pedra,
nove
namorando a vizinha,
sete
levando porrada,
quatro andando sozinho,
três
mudando de cidade,
dez
trocando de assunto,
uma
eternidade,
eu e
você, caminhando junto.
nunca
cometo o mesmo erro duas vezes
já cometo duas
três
quatro
cinco
seis
até
esse erro aprender que só o erro tem vez.
Profissão de Febre
quando
chove, eu chovo,
faz sol, eu
faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus, eu
rezo,
não tem,
esqueço,
chove de
novo, de novo, chovo,
assobio no
vento, daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento
Epitáfio para o corpo
Aqui jaz um
grande poeta.
Nada deixou
escrito.
Este
silêncio, acredito, são suas obras completas.
Epitáfio para
alma
aqui
jaz um artista
mestre em desastres
viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte deus
tenha
pena dos seus disfarces
Eu
queria tanto
eu queria tanto ser um poeta maldito a massa sofrendo enquanto eu
profundo medito
eu queria tanto ser um poeta
social rosto queimado pelo hálito das multidões
em
vez olha eu aqui pondo sal nesta sopa rala que mal
vai dar para dois.
Lembrem de Mim
lembrem de
mim como
de um que ouvia a chuva como quem assiste missa como
quem hesita, mestiça, entre a pressa e a
preguiça.
Marginal é
quem escreve à margem, deixando branca a página para que a
paisagem passe e deixe tudo claro à sua
passagem.
Marginal, escrever na entrelinha, sem nunca
saber direito quem veio primeiro, o ovo ou a
galinha.
quando eu tiver setenta anos então vai acabar esta
adolescência
vou largar da vida louca e terminar minha
livre docência
vou fazer o que meu pai quer começar a
vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe
deseja aproveitar as oportunidades de virar um pilar da
sociedade e terminar meu curso de direito
então ver
tudo em sã consciência quando acabar esta
adolescência.
um dia a gente ia
ser homero a obra nada menos que uma
ilíada
depois a barra pesando dava pra ser aí um
rimbaud um ungaretti um fernando pessoa qualquer um lorca
um éluard um ginsberg
por fim acabamos o pequeno poeta
de província que sempre fomos por trás de tantas
máscaras que o tempo tratou como a
flores
uma carta uma
brasa através por dentro do texto nuvem cheia da minha
chuva cruza o deserto por mim a montanha caminha o mar
entre os dois uma sílaba um soluço um sim um não um
ai sinais dizendo nós quando não estamos
mais
A Lua no Cinema
A lua foi ao
cinema, passava um filme engraçado, a história de uma
estrela que não tinha namorado.
Não tinha porque era
apenas uma estrela bem pequena, dessas que, quando
apagam, ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela
sozinha, ninguém olhava pra ela, e toda a luz que ela
tinha cabia numa janela.
A lua ficou tão triste com
aquela história de amor, que até hoje a lua insiste: —
Amanheça, por favor!
Sujeito Indireto
Quem dera eu achasse um jeito de fazer tudo
perfeito, feito a coisa fosse o projeto e tudo já nascesse
satisfeito. Quem dera eu visse o outro lado, o lado de lá,
lado meio, onde o triângulo é quadrado e o torto parece
direito. Quem dera um ângulo reto. Já começo a ficar
cheio de não saber quando eu falto, de ser, mim, indireto
sujeito.
Paulo
Leminski
(1944-1989)
Paulo Leminski, nascido em
Curitiba/PR em 24 de agosto de 1944, foi poeta e tradutor.
Passou a infância no interior de Santa Catarina, mas escolheu
Curitiba para viver. Foi professor de história e redação,
diretor de criação, redator de publicidade e colaborador do
caderno Folhetim, da Folha de São Paulo. Seus
primeiros poemas foram publicados na revista Invenção,
em 1964, então porta-voz da poesia concreta paulista. A partir
daí, seus textos passaram a ser publicados em inúmeros jornais
e revistas de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Fez,
ainda, resenhas de livros de poesia para a revista
Veja. Em 1976, publicou Catatau. Em seguida,
veio Caprichos e relaxos (1983), Agora é que são
elas (1984), La vie en close (1991), além de
traduções como Folhas das folhas da relva (1983), de
Walt Whitman, e Supermacho (1985), de Alfred Jarry.
Morreu em 07 de junho de
1989.
Fonte:
Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft
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