Só tu
Dos
lábios que me beijaram,
Dos
braços que me abraçaram
Já
não me lembro, nem sei...
São
tantas as que me amaram!
São
tantas as que eu amei!
Mas
tu - que rude contraste!
Tu,
que jamais me beijaste,
Tu,
que jamais abracei,
Só
tu, nesta alma, ficaste,
De
todas as que eu amei.
À Beira do
Caminho
Por essas tardes
plácidas do campo, — Tardes azuis de firmamento
escampo, Eu vou, través de longos carreadores, Sentar-me
num barranco, ermo e distante, Sentindo o fresco aroma
penetrante Que vem da madressilva aberta em
flores.
Tudo me entrista e punge nestas terras! Os
mesmos cafezais. As mesmas serras. A mesma casa antiga da
fazenda, Que outrora viu, quando éramos meninos, Nossos
amores, nossos desatinos, — Toda essa história descorada em
lenda!
Quanta saudade! De manhã bem cedo, Saíamos os
dois pelo arvoredo, De alma contente e exclamações na
voz. Como éramos apenas namorados, E andássemos, a rir, de
braços dados, Os camponeses riam-se de nós!
Era
dezembro. Florescia o milho, Verde e glorioso como o nosso
idílio. Que lindas roças! Que estação aquela! Toda a velha
fazenda parecia, Com sua larga e rústica alegria, Mais
cheia de aves, mais ruidosa e bela!
Ainda guardo, intata,
na memória, Aquela ingênua e deliciosa história, Que foi o
meu e o teu primeiro amor. E ai! que recordação, que duro
travo, Lembrar que eu fui o teu rei o teu escravo, Saber
que fui eu teu servo e teu senhor!
E cismo... Cismo... A
tarde vai tombando. De lado a lado, claras,
azulando, Destacam-se as colinas no horizonte. Tristonha,
a várzea na amplidão se perde. Lá em baixo um bambual sombrio
e verde. Um fio dágua. Uma arruinada ponte.
Assim, ao
pôr do sol, triste e sozinho, Sentado num barranco do
caminho, Sem que ninguém meu coração compreenda, Olho a
mata, olho os campos, olho a estrada Ouvindo a melancólica
toada Que chora, ao longe, o piano da fazenda...
A Forasteira
Dissera-me o barbeiro
da vilota, Que essa elegante, essa gentil devota, Que
freqüentava assim as ladainhas, Também quisera, em busca de
bons ares, Passar o mês das férias escolares, Na mesma
terra onde eu passava as minhas.
E ali, na vila, nessa
pobre aldeia, Tão incolor, tão rústica, tão feia, Povoada
de caboclos indigentes, A forasteira, com seu ar
touriste, Com seu chapéu de plumas, com seu
chiste, Chocava o povo e deslumbrava as gentes!
E eu,
que vivia a padecer nesse ermo, A definhar-me, torturado e
enfermo, Nas nostalgias dessa vila odiosa, Eu bem sentia,
ao ver essa estrangeira, Que na minh'alma, pela vez
primeira, Brotara a flor duma paixão
furiosa...
A Vila
Lembro-me bem dessa vilota rude, Onde eu me fui, sem
gosto e sem saúde, Buscar um poiso para os meus
cansaços. Que terra triste! Triste e sertaneja: A escola,
a hospedaria, a antiga igreja, E a capelinha do Senhor dos
Passos...
Na esquina, em frente à Câmara, o
barbeiro, Logo depois, num colossal letreiro, A "Loja
Popular" do velho Lopes. E é bem no largo da Matriz que
fica A sempiterna, a clássica botica, Com seus reclames de
óleos e xaropes...
Ah! Foi aí, nesse ermo de
tristeza, Nessa terreola fúnebre e burguesa, Tão sem
encantos, tão descolorida, Que eu fui viver, com lágrimas e
flores, No mais cruel amor dos meus amores, A página
melhor da minha
vida!
Árvores
Tristes
Eu, nestes campos,
longe do tumulto, Amo essas tristes árvores que
crescem Por sobre as margens dum arroio oculto, Ouvindo as
águas que cantando descem...
Gosto de vê-las à tardinha,
envoltas Numa suave e mística tristeza, Olhando os rolos
das espumas soltas Que encrespam o lençol da
correnteza.
Tristonhas plantas! Árvores sombrias! Como
se as torturasse estranha mágoa, E as compungissem fundas
nostalgias, — Procuram consolar-se à beira d'água.
Oh!
vós que amais os campos, nunca as vistes? — Desconsoladas,
trêmulas, chorosas, Pelas barrancas dos arroios
tristes Debruçam as ramagens silenciosas...
Que
importa o sol, que importa a chuva e o vento, Se sempre as
mesmas ânsias as consomem? Talvez — quem sabe? — nesse
desalento, Palpite e sofra o coração dum homem!
Talvez
nessas folhagens, nesses ramos, Torturados de angústia e
desconforto, — Sem que a vejamos, sem que a
compreendamos, Soluce a alma de algum poeta morto.
Ai,
não turbeis a misteriosa mágoa, A imensa nostalgia em que se
abismam; Deixai-as em silêncio, à beira dágua, Essas
tristonhas árvores que
cismam...
Certa Vez
Certa vez...
Vá, não cores desse jeito! Eu era um estudante de
direito, Tu eras uma simples normalista: Podíamos,
portanto, meu tesouro, Fazer, como fizemos, sem
desdouro, Essa loucura que hoje te contrista.
Com que
emoção — recordas? — com que gozo, Eu vinha te esperar,
vibrante e ansioso, Nessas novenas de plangências cavas. E
como um cavalheiro que se preza, Timbrava em te levar, depois
da reza, Até ao portão da chácara em que
estavas.
Certa vez... Vá, não cores desse jeito! Era
de noite. Arfava-nos o peito. Ardia em nós um lânguido
desejo, Tomei-te as mãos... Sorriste... E aí, num
assomo, As nossas bocas, sem sabermos como, Famintamente
uniram-se num beijo!
Escândalo
Era costume, à tarde,
em frente à Escola, Por entre os homens graves da
terreola, Bisbilhotar-se sobre a vida alheia. Nas rodas
que tratavam tais assuntos, Aquela história de passearmos
juntos Era o supremo escândalo da aldeia!
E o chefe, e
o juiz de paz, e o boticário, Teciam o mais negro
comentário Ao nosso ingênuo amor, todo feitiço! O próprio
padre, um santo e velho cura, Dizia ao ver-nos: "Eis a má
leitura!" "São os livros de Zola que fazem
isso..."
Mas nós, como pastores de
Virgílio, Vivendo então num descuidoso idílio, Sorríamos
dos toscos provincianos: E em plena aldeia, desdenhando
apodos, Passávamos de braço, entre eles todos, Na glória
dos que se amam aos vinte
anos!
Fim de Viagem
Venho a sonhar
contigo... E, no meu sonho, Vendo o arraial bucólico,
risonho, Onde floriu essa paixão feliz... Com que saudade,
com que gosto amargo, Relembro a tua casa em frente ao
Largo, Que tu chamavas "Largo da
Matriz...".
Vejo-te ainda, lá nesse povoado, Tua
cestinha de costura ao lado, Perdida em sonhos de
felicidade. E o trem, enquanto assim eu cismo,
aflito, Entra, a bufar, com enervante apito, Pela cidade
adentro... Oh, a cidade!
Suas ruas. Vielas. Bairros
proletários. Rasgando o azul, ao longe, os campanários, E
as chaminés das fábricas e usinas. Vivos letreiros, no alto,
em letras largas. Aqui — vagões; depósitos de
cargas; Pontes, guindastes, máquinas, cabinas...
Mas
eu, no entanto, pensativo e mudo, Passo por tudo, indiferente
a tudo, Bem longe tendo o espírito daqui; E vejo apenas —
que visão tranqüila! — Tua longínqua e solitária
vila, Donde, chorando, esta manhã
parti...
Ídilio
"Vamos?"
disseste... E eu disse logo: vamos! Ia no céu, nos pássaros,
nos ramos, Uma alegria esplêndida e sonora; E tu, abrindo
ao sol, como uma tenda, Tua sombrinha de custosa
renda, Partimos ambos pela estrada afora...
Eram
pastagens largas, eram roças, Carros de bois, currais,
barreadas choças, E rústicos galpões de pau-a-pique; Só
tu, nessa bucólica simpleza, Com teu "tailleur" de
casemira inglesa, Punhas uns tons de mundanismo
chic.
E a poeira, e o sol queimante, e a dura
estrada, Nós, papagueando, sem sentirmos nada, Seguíamos
num sonho encantador: É que a felicidade, como um
vinho, Fazia-nos andar pelo caminho, Tontos de gozo e
bêbedos de amor!
Os Colonos
Lá vem o dia apontando... Que afã! Já todos de
pé! Ruidosos, tagarelando, Vão os colonos em bando Para
os talhões de café.
À luz do sol que amanhece, Por
montes, por barrocais, Por toda a parte esplandece, Com
sua esplêndida messe, O verde dos cafezais!
Começa o
rude trabalho. Que faina honrada e feliz! Inda molhados de
orvalho, Flamejam, em cada galho, Os bagos como
rubis.
Trabalham. Que ardor de mouro! Todos derriçam
café. Parece um rubro tesouro, Que cai, numa chuva de
ouro, Dos ramos de cada pé.
Ao meio-dia, aos
ardores Do alto sol canicular, Os rudes
trabalhadores, Ao longo dos carreadores, Põem-se todos a
cantar.
Pela dormência dos ares, Sob estes céus cor de
anil, Cantam canções populares, Que lá, dos seus velhos
lares, Trouxeram para o Brasil.
Aqui, um forte
italiano, Queimado ao sol do equador, Solta aos ventos,
belo e ufano, Num timbre napolitano, A sua voz de
tenor!
Há uma terna singeleza Nas trovas que um outro
diz; Um rapagão de Veneza Tem, no seu canto, a
tristeza Das águas do seu país.
E uma sanguínea
espanhola, De grandes olhos fatais, Em baixa voz
cantarola Uns quebros de barcarola, Magoados,
sentimentais...
Que cantem!... Essa cantiga, Brotada
no coração, Seja a prece que bendiga A terra que hoje os
abriga, A pátria que lhes dá
pão!
Sinh'Ana
Sinh'Ana é uma
velhota quitandeira, Comadre e amiga desta vila
inteira, Rica nos anos, rija na saúde Que vive toscamente
ao pé da estrada, Numa casinha, simples e barreada, Dum
pitoresco delicioso e rude.
Ah! Quanta vez, nessas manhãs
vermelhas, Cheias de aromas, de canções, de abelhas, Nós
dois, numa travessa caminhada, Não vínhamos ali — que bom
passeio! — Ver a frescura, a paz, o casto asseio, Da
humilde casinhola ao pé da estrada!
E quanta vez também
(que ação profana!) Doirávamos a toca de Sinh'Ana, Com
beijos e carícias romanescas, Enquanto a velha, a cândida
velhinha, Voltando ingenuamente da cozinha, Trazia um
prato de broinhas
frescas...
A Fazenda
Seis horas... Salto
do leito, Que
céu azul ! que bom ar ! Ai, como sinto no peito, Moço, vivo,
satisfeito,
O coração a cantar !
No meu quarto, alegre
e claro, Há
rosas e girassóis. Eu, com enlevo, reparo No mínimo do seu
preparo,
Na alvura dos seus lençois.
Que doce encanto, e
que graça,
Nesta simples aldeã, Tem sobre os vãos da vidraça, Leves cortinas de
cassa,
Bailando ao sol da manhã !
O
Fruto
E da florida
janela
Que eu abro de par em par, --Verde painel, larga
tela,
Da cor mais viva e mais bela, Desdobra-se
ao meu olhar !
A manhã que é
fresca e branda, A rir, gloriosa e feliz, Doira a casa
veneranda,
Com a sua quieta varanda Cheirosa de
bogaris...
Um renque de
altos coqueiros Circunda o velho pomar; Toscos, enormes
tabuleiros, Ficam em frente os terreiros, Com grãos em
coco a secar.
Num quadro
curvo e sozinho, Um pobre negro, o Bié, A passo
devegarinho, Com seu rumoroso ancinho, Lá vai
rodando o café...
Depois -- a
máquina, a tulha, O alpendre, o farto paiol: Ah ! como a roça
se orgulha
De ver subir a fagulha, Que lança a
máquina ao sol !
Branca, entre
tufos, a escola Na entrada logo se vê: Aí, nessa
casinhola,
A filha de nhá Carola Vive a ensinar o A B C.
Fulgem na
estrada tranqüila, Casinhas brancas de cal: É a colonia que
cintila,
Graciosa como uma vila, Risonha como
um pombal.
Ao longe, o
pasto, a cancela, -- Um boi deitado no chão: Paisagem rude e
singela,
Daria fina aquarela, De puro estilo aldeão.
E além para lá
da ponte,
Ao lado do matagal, Por sobre as lombas do
monte,
Por todo o imenso horizonte, --
Alastra-se o cafezal.
O olhar,
tonto, se extasia, Na cena rústica e chã; E a gente sente a
poesia,
Sente a radiosa alegria De tão
soberba manhã !
Absorto no
panorama
Que assim contemplo, de pé. Eis que uma velha mucama, Surgindo à porta
me chama: "Nhonhô, tá pronto o café..."
Paulo
Setúbal
(1893-1937)
Paulo Setúbal nasceu em 01
de janeiro de 1893, na cidade de Tatuí/SP
formou-se, em 1914, bacharel em Direito, em São Paulo. Na
época já havia tido poema publicado na primeira página do
jornal A Tarde. Em 1920 ocorreu a publicação de seu
livro de poesia Alma Cabloca, cuja edição, de três
mil exemplares, esgotou-se em um mês. Entre 1925 e 1935
publicou vários romances históricos, entre eles A Marquesa
de Santos, O Príncipe de Nassau e A Bandeira
de Fernão Dias. Em 1926, trabalhou como colaborador do
jornal O Estado de S. Paulo. Nos anos de 1928 e 1930
foi deputado estadual, mas renunciou ao mandato por ter
agravada sua tuberculose.
Publicou, nos anos seguintes, livros de
contos, crônicas e memórias. Em 1935 foi eleito membro da
Academia Brasileira de Letras. Poeta vinculado à estética
parnasiana, Paulo Setúbal tematizou em seus versos a vida dos
camponeses, dos "caboclos" do interior de São Paulo. Pela
escolha do tema, na época foi chamado de "poeta regional".
Foi também famoso e respeitado autor de obras
de temática histórica, dentre as quais se destacam o romance
A Marquesa de Santos (1925) e o livro de crônicas
O Ouro de Cuiabá (1933). Faleceu em 04 de maio de
1937.
Fonte: Itaú Cultural - www.itaucultural.org.br | |