Telha
de Vidro
Quando a moça da cidade chegou veio morar na
fazenda, na casa velha... Tão velha! Quem fez aquela
casa foi o bisavô... Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura! mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...
A moça não disse nada, mas mandou buscar na
cidade uma telha de vidro... Queria que ficasse
iluminada sua camarinha sem claridade...
Agora, o quarto onde ela mora é o quarto
mais alegre da fazenda, tão claro que, ao meio dia, aparece
uma renda de arabesco de sol nos ladrilhos vermelhos,
que — coitados — tão velhos só hoje é que conhecem a luz
doa dia... A luz branca e fria também se mete às vezes
pelo clarão da telha milagrosa... Ou alguma estrela
audaciosa careteia no espelho onde a moça se penteia.
Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria, sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta? A moça foi tão vem
sucedida... Ponha uma telha de vidro em sua
vida!
Geometria
dos Ventos
Eis que temos
aqui a Poesia, a grande Poesia. Que não
oferece signos nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio. como
o sangue nas artérias, tão espontânea que nem se sabe como
foi escrita. E ao mesmo tempo tão elaborada - feito uma
flor na sua perfeição minuciosa, um cristal que se arranca
da terra já dentro da geometria impecável da sua
lapidação. Onde se conta uma história, onde se vive um
delírio; onde a condição humana exacerba, até à fronteira da
loucura, junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo
tempo fácil e insolúvel da sua tragédia. Sim, é o
encontro com a Poesia.
Diversidades em Tempo de Seca
Quando Chico Bento, depois daquela noite passada ali, no
abandono da estrada, chamou a mulher e, ajudando a levantar um dos
meninos, foi andando em procura do povoado, em vão buscou, pelas
voltas do caminho, sentando nalguma pedra, o vulto de
Pedro.
Na
estrada limpa e seca só se via um homem com uma trouxinha no
cacete, e mais à frente, dentro de uma nuvem de poeira um
cavaleiro galopando.
-
Que besteira! Naturalmente ele já está no Acarape...
Mas chegaram ao Acarape, e debalde perguntaram pelo menino
a todo o mundo. Não... Ninguém tinha visto... Sabia lá!... A toda
hora estava passando retirante...
Numa bodega, onde o vaqueiro novamente fez indagações
alguém lembrou:
-
Homem, por que você não vai falar ao delegado? Ele é que pode dar
jeito. Mora ali, naquela casa de alpendre.
No
modo que agora era o seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento
endireitou para a casa apontada, que ficava meio apartada das
outras, tendo de um lado um alpendre onde se viam algumas
cangalhas de palha roída.
E
bateu à porta, enquanto Cordulina se sentava no chão, na beirada
do alpendre.
Lá
de dentro, uma voz de mulher disse baixinho:
-
Abre não, menina, é retirante... É melhor fingir que não
ouve...
Chico Bento escutou; e sua voz lenta explicou,
dolorida:
-
Não vim pedir esmola, dona; eu careço é de ver o delegado
daqui...
Um
homem de cachimbo no queixo mostrou a cara na meia
porta:
-
Está falando com ele. O que é?
Chico Bento ficou um instante encarnando o homem,
reconhecendo-o.
Mas o delegado, impaciente, repetiu a pergunta:
-
O que é que você queria?
-
Eu vim falar ao senhor mode um filho meu, que desde ontem tomou
sumiço. Nós ficamos na estrada, eu assim, variando muito fraco...
e ele veio vindo até aqui. Quando de manhã cacei o menino, não
teve quem desse notícia.
É
como é ele?
-
Assim comprido, magrinho, a cara chupada... está dentro dos doze
anos...
O
delegado tirou o cachimbo da boca e, calcando com o dedo o tabaco,
abanou a cabeça:
-
Não tenho jeito que dar não, meu amigo... O menino, naturalmente,
foi-se embora com alguém... Um rapazinho, assim sozinho, muita
gente quer.
Cordulina ouvia confusamente o que diziam, e chorava,
baixinho. Desanimado, Chico Bento sentou-se na mesma beirada de
tijolo, junto à mulher.
Ainda na porta, o delegado entrou a fitar o caboclo com
insistência, reconhecendo também aquela cara, o jeito de ombros, a
fala.
E
perguntou:
-
Donde você é?
A
voz cansada soou fracamente:
-
Eu sou filho natural de Iguatu, mas faz muito tempo que morava
pras bandas do Quixadá.
O
homem procurou arejar a memória:
-
Nas terras de Dona Maroca?
-
Inhor sim, nas Aroeiras...
O
delegado abriu a porta e saiu para o alpendre:
-
Bem que eu estava conhecendo! É o meu compadre Chico
Bento!
Chico Bento pôs-se em pé:
-
Inhor sim... Eu também, assim que olhei pra vosmecê, disse logo
comigo: este só pode ser o compadre Luís Bezerra... Mas pensei que
não se lembrava mais de mim...
O
delegado convidou:
-
Entre, compadre! Essa é a comadre? Adeus, comadre, entre também!
Cadê meu afilhado? Será esse que fugiu?
Cordulina entrava, puxando por um dos meninos, e
respondeu:
-
Inhor não... O seu afilhado era o Josias, morreu na
viagem...
O
homem chamou a mulher:
-
Eh! Doninha! venha falar com uns conhecidos! Entre, compadre, ela
está na cozinha. Vá entrando!
Depois, ficando só com Chico Bento, atentou na miséria
esquelética e esfarrapada do retirante:
-
Então, compadre, que foi isso? A velha largou você?
-
Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as
porteiras... E eu fiquei sem ter o que fazer. A morrer de fome,
antes andando...
O
delegado quase deixou cair o cachimbo, num assombro:
-
Não diga isso, compadre, não é possível! Deixar morrer aquele
algodão todinho, sem mais pra quê!
-
Pois mandou soltar no dia de São José! Eu ainda esperei obra duma
semana...
O
delegado se exaltou, gesticulando com o cachimbo:
-
Aquela velha é uma desgraça! Tenho fé em Deus que o dinheiro que
ela poupa ainda há de lhe servir pra comer em cima duma cama...
Você não se lembra por que foi que eu saí das Aroeiras, compadre?
Me convidou para abrir uma bodega, que me daria mundos e fundos,
garantia de um tudo. Gastei o que tinha e o que não tinha em
mercadoria, e o resultado foi aquele... Era obrigado a fornecer a
ela pelo custo, tinha de fazer isso, fazer aquilo, e ela não me
dava interesse de qualidade nenhuma. Um dia mandei tudo pro diabo,
liquidei como pude o que possuía, e me larguei pra cá. Inda hoje
não me arrependi... Mas você ficou, foi-se fiar nesse negócio de
madrinha Maroca, teve o pago...
Chico Bento baixou a cabeça, concordando; olhou em redor, a
casa caiada, a mesa envernizada, uma arca de couro, um relógio de
parede:
-
É, compadre, você está bem...
Lá
de dentro a voz de Doninha chamou o marido:
-
Luís, traz o compadre aqui, pra botar qualquer coisa no
estômago!
Quando viu Chico Bento abancado, comendo, o delegado saiu
da sala:
-
Vou mandar dois cabras atrás de seu menino. Não mando praça,
porque só tem lá na Redenção. Aqui no Acarape, só
requisitando.
Do
alpendre, mandou um moleque com um recado, e os dois cabras
chegaram:
-
Vocês vão ver se encontram um menino, filho de retirante, que
atende por Pedro. Sumiu-se esta noite. Vejam lá se dão um jeito de
achar. O pai anda em tempo de correr doido e é meu
compadre!
Depois foi à cozinha, consolou Cordulina:
-
Sossegue comadre, já mandei caçar seu filho. Se estiver por cima
do chão, se acha...
Mas os cabras voltaram ao meio-dia sem o menino.
Um
deles não conseguira apurar nada. O outro contou que o menino
tinha sido visto na véspera de noite, num rancho de comboieiros de
cachaça.
-
Naturalmente tinha ido embora mais eles, de
madrugada...
Cordulina já quase nem chorava.
Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia
estar em maior desgraça do que ficando com o pai?
Nesse mesmo dia, à tarde, tomaram o trem para a cidade.
Alma boa, o compadre Luís Bezerra! Tinha arranjado
passagens, dera uma roupa sua ao Chico Bento, tinha feito a
Doninha arranjar um vestido velho para Cordulina...
E
agora, sentados, juntos, apertados, os três meninos que restavam
muito agarrados a eles, abrindo os olhos de espanto à confusão de
gente que se aglomerava no carro sujo, cuspido, fumacento - com as
roupas brancas lavadas contrastando esquisitamente com a espessa
sujeira dos corpos - Cordulina e o marido sentiram o trem apitar e
sair correndo, e viram sumir a casa branca com o alpendre do lado,
onde o compadre Luís Bezerra, em pé, de mãos nos bolsos, fumava o
seu cachimbo.
No
mesmo atordoamento chegaram à Estação do Matadouro.
E
sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e se
viram levados através da praça de areia, e andaram por um
calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde
uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo
fogo.
Só
aos poucos se repuseram e se foram orientando.
Cordulina acomodou-se como pôde, ao lado do cajueiro onde
tinham parado.
Da
banda de lá, um velho deitado no chão roncava, e uma mulher de
saia e camisa remexia as brasas debaixo de uma panela de
barro.
Cordulina foi à sua trouxa, e tirou de dentro um resto de
farinha e um quarto de rapadura, última lembrança da comadre
Doninha.
Deitado na areia, calçado com um pano, já o Duquinha
dormia. Os outros dois metiam a mão na farinha engolindo
punhados.
Chico Bento olhava a multidão que formigava ao seu
redor.
Na
escuridão da noite que se fechava, só se viam vultos confusos ou
alguma cara vermelha e reluzente, junto a um fogo.
Tudo aquilo palpitava de vida, e falava, e zunia em gritos
agudos de menino, e estralejava em gargalhadas e em gemidos, e até
em cantigas.
E
estendendo a vista até muito longe, até aos limites do Campo de
Concentração, onde os fogos luziam mais espalhados, o vaqueiro
sacudiu na boca uma mancheia de farinha que lhe oferecia a mulher
e, procurando quebrar entre os dedos um canto de rapadura,
murmurou de certo modo consolado:
-
Posso muito bem morrer aqui; mas pelo menos não morro
sozinho...
(Trecho de
"O quinze"
- 1930)
A
Ocupação e a Sensação Angustiosa de Espera
Agora, que já tinha um serviço, João Miguel passava parte
do dia fazendo longas tranças de palha, ao lado do milagreiro, que
se sentava à soleira da porta, esculpindo os seus pedaços de
anatomia.
A sensação angustiosa de espera, que tanto o martirizara
nos primeiros dias de prisão, ia-se aos poucos
abrandando.
Porque o que mais o torturava, a princípio, fora a
indecisão sobre o seu destino, entregue às alternativas de bem ou
de mal da justiça, feito um pau largado na força de uma
correnteza.
A atitude permanente de festa, que sentia necessária,
afligia-o como uma insônia.
Imaginara, no começo, que, ali, preso, tudo conspiraria
para o comprometer, para o desgraçar, para o prender
mais.
Porém, com o correr dos dias, com a oportunidade de um
trabalho manual, ia-se suavizando a tensão nervosa. E mormente o
tranqüilizou a indiferença geral por ele e pelo seu
crime.
Já se entregava à sorte, disposto a tudo, até a ficar ali
longos anos, os melhores anos de sua vida...
O milagreiro, que era solto ali dentro, não lhe abandonava
a porta, sempre agarrado a um pedaço de pau e ao canivete, sempre
seguido do enxame de cavacos.
Já lhe contara todos os seus passos, as paixões, as
ambições, as boas e más fortunas, uma viagem ao
Amazonas...
João Miguel notara:
- Também já andei lá no Amazonas...
- Você donde é?
- Dos Inhamuns. Mas vim de lá pequeno. Desde que me
entendo, corro mundo...
O outro abanou a cabeça.
- Pra vir acabar aqui...
- Acabar, uma história! Deus me livre de me acabar
aqui!
O milagreiro encolheu os ombros e, na sua voz comprida, de
vogais intermináveis, arrastou:
- Ora, eu, que só peguei oito anos, nem me lembro mais de
sair... Quanto mais você, que ainda nem foi a júri...
E o homem contara o desespero dos seus primeiros dias de
cadeia, a sua fúria:
- Mas, depois, se vai indo e acostuma. Você é até dos mais
mansos. Parece que nasceu aqui... Cadeia acaba sendo o mesmo que o
Amazonas... Você, que já andou por lá, por força se lembra. Tem
uns que, é só chegar, num instante se acostumam. Outros nunca
passam de brabo...
João Miguel dissera apenas, torcendo cuidadosamente a
palha:
- Uma coisa é ser, outra é parecer...
Porém, o fato é que a sua resignação era mais real do que
simulada. Como todo caboclo, tinha, na alma, essa crença na
fatalidade que tanto ordena o bem como o mal. Estava ali porque
era destino... se cumpriu...
Não pensava no morto. E, quando, a um puxavante da
consciência, tentava recordá-lo, sentia-o estranhamente afastado
de si.
Que tinha ele, ali, agora, com esse desconhecido que
morrera?
É verdade que a facada fora sua. É verdade. Mas por que não
lhe ficara nenhuma marca do gesto?
A grande causa de esquecimento, a responsável pela pouca
contrição da gente e a pouca constância no arrependimento, é o
tempo não ser, como o espaço, uma coisa onde se possa ir e vir,
sair e voltar... O que se passa no tempo, some-se, anda para longe
e não volta nunca, pior do que se estivesse do outro lado de terra
e mar.
Afinal, quem pode manter, num espelho, uma imagem que
fugiu?
O Zé Milagreiro chegou a contar até a história da sua
morte.
- Tinha meu roçadinho, Seu João... Eu mesmo broquei,
encoivarei. Eu mais a mulher, rapando todo o dia com um caquinho
de enxada, na terra braba. Inverno bom de legume, foi um milho e
um feijão famoso. O milho já estava bonecando, o feijão florando.
E o desgraçado todo o dia abria um buraco na ramada, metia a burra
dentro. Eu reclamava, tapava a cerca. No outro dia, ia ver, estava
a mesma presepada: a cerca furada e a sem-vergonha da burra
estragando tudo. Fui ao miserável, perguntei se ele não tinha
sentimento, se pensava que o suor dos outros era mijo da mãe
dele... E aí pegou palavra daqui e de lá, e eu acabei lhe
enterrando tanto assim de faca nos peitos. Pegou mesmo no
coração.
Zé Milagreiro, enquanto conversava, acabava de esculpir uma
cabeça de homem quase em tamanho natural, de perfil tristonho e
pontudo, a cara fina e doentia de uma visagem.
Marcava apressadamente os olhos, a fenda estreita da boca,
as pequenas orelhas duras e redondas como seixos, porque a
encomenda era vexada, de longe, de um homem de Sobral que se
botava pra Canindé: um doido corrido, que São Francisco curara, e
ia, com a cabeça de pau, remir a sua dívida com o
santo.
E, alisando no crânio chato do milagre a curva do cabelo na
testa, Zé Milagreiro acrescentou:
- Eu não sou nenhum doido, pra pensar que é muito certo se
matar um vivente... Mas também tinha a minha razão... E olhe, Seu
João, só me botaram na cadeia porque os doutores pegaram com muita
conversa, com história que o outro era um pobre pai de
família...
Seguro na mão do preso, o grande ex-voto de pau, suposta
imagem do louco, fitava no vago o olhar estranho.
- Como se eu também não fosse pai de família...
João Miguel, que já costurara com a trança toda a copa do
chapéu e passava à aba, indagou:
- E que é feito da sua família, Seu Zé?
- Andam por aí espalhados lá no Riachão, onde eu morava. A
mulher vive de fazer renda, de apanhar legume na safra; o menino
mais velho deu-se aos padrinhos... uma mocinha que eu tinha casou
com um cabra desgraçado, filho na desgraça...
Chegou junto deles um rapaz moreno, alto e magro, com as
mãos nos bolsos da blusa desabotoada, um lenço vermelho no
pescoço.
Acercou-se da porta onde os dois conversavam. Parou uns
instantes, olhou a cabeça de pau, e lembrou:
- É ver o soldado Chicute! Escritinho! Também nunca vi
diabo da cara de milagre como aquele!...
Afirmou-se novamente no ex-voto, riu-se:
- Eh! Eh! Adeus, Chicute! - e saiu assobiando.
João Miguel comentou:
- Depois que estou aqui, é a segunda vez que vejo esta
criatura.
- É porque ele vive lá fora, mais os soldados. Como não é
criminoso de morte, tem mais vantagem que os outros.
- E por que é que ele está aqui?
O outro baixou a fala:
- Quando vem alguém, e pergunta por que é que está preso,
ele diz que foi por causa de umas cacetadas que deu noutro...
Natural, tem vergonha de dizer que é ladrão...
O milagreiro murmurou, mais baixo ainda:
- Você não vá dizer que fui eu que lhe contei, que ele se
dana. Foi ele que arrombou a loja do velho Lulu, e carregou tudo,
até o dinheiro da gaveta de segredo. E nunca disse a ninguém onde
escondeu o roubo...
- É engraçado ele não querer que a gente saiba!... - E João
Miguel riu. - Na minha mente, quem estava aqui não se importava de
contar mais nada...
- Por quê? Pois eu acho muito direito ele não querer
contar...
Quem é que gosta de ter fama de ladrão, criatura? Mas antes
matar do que pegar no alheio...
Dados os últimos cortes na cabeça, Zé Milagreiro separou-a
pelo pescoço e ficou fazendo com o canivete, aqui, além, uns
retoques.
João Miguel concluiu também os derradeiros pontos na
palha.
E, pronto o chapéu, quebrou-lhe a aba na frente, pô-lo
subitamente na cabeça polida do milagre.
- Olhe, Seu Zé, como o bicho está gaiato!
Vendo a estranha figura encarapuçada, dum ridículo
singularmente doloroso que sugeria uma maldade ou uma profanação,
Zé Milagreiro arrancou-lhe rapidamente o chapéu, como se receasse
um castigo:
- Deixe disso, Seu João! Pode o santo se zangar!
(João Miguel - 1932)
A Arte de Ser Avó
Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter
feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os
ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os
compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se
trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é
realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o
filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente,
obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do
que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem
as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora
você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas
acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus
ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores
nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas
efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe
fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu
pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu
redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles
adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro
e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não
encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e
mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
---
E
então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias
da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino.
Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores,
sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de
saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela
criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é
"devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu
direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria
escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com
todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado,
no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos
compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores
novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio,
nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito
de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da
mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto
fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um
neto...
No
entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há,
acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa
que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do
garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe
dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de
noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São
lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente,
nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em
relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante
dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da
domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de
comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a
fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de
castigar.
Já
a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e
do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não
programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de
pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente
das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de
opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite
passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os
encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o
proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da
disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer
roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer
trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água
do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e
até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o
lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer
má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da
avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da
educação moderna...
---
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta
os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não
estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu
neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o
direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso.
Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas
ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso
neto!
E
quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um
olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de
felicidade, como pão ao forno.
E
o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que
a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não
ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional
cumplicidade...
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se
intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou
porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele.
Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas
recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço
pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque
"ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era
um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem
dinheiro que pague...
(O
brasileiro perplexo, 1964.)
A Velha Amiga
Conversávamos sobre saudade. E de repente me
apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de
qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais
feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem
sequer das borboletas azuis, Casimiro.
Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é
falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas
não no passado, e sim presença atual.
Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar
atrás? Acho que não, nem com eles.
A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação
de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os
meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se
devia muito mais.
Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar
como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou
expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você
insinua a suspeita de que talvez seja isso uma
atitude.
Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me
rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de
morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu
direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga,
não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter
saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu
lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei,
gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar
até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias.
Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos
outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns
traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim,
iguala a todos.
Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade -
mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que
não sabe o que quer, ou quer demais.
Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem
pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de
felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o
período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos
desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e,
por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente
quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse
mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de
todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma
balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale
menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a
diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma
arroba de plumas.
Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do
mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta
felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua
angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos,
você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já
pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito,
só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também
os desenganos.
A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e
objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o
desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é
novo, o tédio do possuído.
E depois há o capítulo da morte, sempre presente em
todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos
moços e a companheira dos velhos.
Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi
se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar
devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista
fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto
nos manda um postal, para indicar que já embarcou.
(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo"
- 13/01/2001)
Rachel de
Queiroz
(1910 -
2003)
Rachel de Queiroz,
romancista e cronista brasileira. Nasceu em Fortaleza, Ceará,
e residiu na cidade do Rio de Janeiro.
Com a publicação de O quinze
(1930) tornou-se a única representante feminina do "romance do
nordeste". Nos livros seguintes, João Miguel (1932),
Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939),
foi aperfeiçoando sua temática social e regionalista. Dora,
Doralina (1975) e Memorial de Maria Moura (1992)
são seus romances mais recentes: "De mim ele só chegava perto
quando de serviço ou chamado meu. Nunca me tocou nem com a
ponta do dedo, nunca também me olhou nos olhos. Nunca me
sorriu." Dedica-se ainda à literatura infantil, ao teatro e à
tradução.
No início da década de 1970, a Academia
Brasileira de Letras modificou seus estatutos para receber
Rachel de Queiroz, primeira acadêmica mulher do
Brasil.
Faleceu em 04 de novembro de 2003.
Fonte:
Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft
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