Coign of Vantage - Alma Tadema 


 
 

 

 

Telha de Vidro

 

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!

 

 

 

 

Geometria dos Ventos

 

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.

 

 

 

Diversidades em Tempo de Seca

 

Quando Chico Bento, depois daquela noite passada ali, no abandono da estrada, chamou a mulher e, ajudando a levantar um dos meninos, foi andando em procura do povoado, em vão buscou, pelas voltas do caminho, sentando nalguma pedra, o vulto de Pedro.

Na estrada limpa e seca só se via um homem com uma trouxinha no cacete, e mais à frente, dentro de uma nuvem de poeira um cavaleiro galopando.

- Que besteira! Naturalmente ele já está no Acarape...

Mas chegaram ao Acarape, e debalde perguntaram pelo menino a todo o mundo. Não... Ninguém tinha visto... Sabia lá!... A toda hora estava passando retirante...

Numa bodega, onde o vaqueiro novamente fez indagações alguém lembrou:

- Homem, por que você não vai falar ao delegado? Ele é que pode dar jeito. Mora ali, naquela casa de alpendre.

No modo que agora era o seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento endireitou para a casa apontada, que ficava meio apartada das outras, tendo de um lado um alpendre onde se viam algumas cangalhas de palha roída.

E bateu à porta, enquanto Cordulina se sentava no chão, na beirada do alpendre.

Lá de dentro, uma voz de mulher disse baixinho:

- Abre não, menina, é retirante... É melhor fingir que não ouve...

Chico Bento escutou; e sua voz lenta explicou, dolorida:

- Não vim pedir esmola, dona; eu careço é de ver o delegado daqui...

Um homem de cachimbo no queixo mostrou a cara na meia porta:

- Está falando com ele. O que é?

Chico Bento ficou um instante encarnando o homem, reconhecendo-o.

Mas o delegado, impaciente, repetiu a pergunta:

- O que é que você queria?

- Eu vim falar ao senhor mode um filho meu, que desde ontem tomou sumiço. Nós ficamos na estrada, eu assim, variando muito fraco... e ele veio vindo até aqui. Quando de manhã cacei o menino, não teve quem desse notícia.

É como é ele?

- Assim comprido, magrinho, a cara chupada... está dentro dos doze anos...

O delegado tirou o cachimbo da boca e, calcando com o dedo o tabaco, abanou a cabeça:

- Não tenho jeito que dar não, meu amigo... O menino, naturalmente, foi-se embora com alguém... Um rapazinho, assim sozinho, muita gente quer.

Cordulina ouvia confusamente o que diziam, e chorava, baixinho. Desanimado, Chico Bento sentou-se na mesma beirada de tijolo, junto à mulher.

Ainda na porta, o delegado entrou a fitar o caboclo com insistência, reconhecendo também aquela cara, o jeito de ombros, a fala.

E perguntou:

- Donde você é?

A voz cansada soou fracamente:

- Eu sou filho natural de Iguatu, mas faz muito tempo que morava pras bandas do Quixadá.

O homem procurou arejar a memória:

- Nas terras de Dona Maroca?

- Inhor sim, nas Aroeiras...

O delegado abriu a porta e saiu para o alpendre:

- Bem que eu estava conhecendo! É o meu compadre Chico Bento!

Chico Bento pôs-se em pé:

- Inhor sim... Eu também, assim que olhei pra vosmecê, disse logo comigo: este só pode ser o compadre Luís Bezerra... Mas pensei que não se lembrava mais de mim...

O delegado convidou:

- Entre, compadre! Essa é a comadre? Adeus, comadre, entre também! Cadê meu afilhado? Será esse que fugiu?

Cordulina entrava, puxando por um dos meninos, e respondeu:

- Inhor não... O seu afilhado era o Josias, morreu na viagem...

O homem chamou a mulher:

- Eh! Doninha! venha falar com uns conhecidos! Entre, compadre, ela está na cozinha. Vá entrando!

Depois, ficando só com Chico Bento, atentou na miséria esquelética e esfarrapada do retirante:

- Então, compadre, que foi isso? A velha largou você?

- Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras... E eu fiquei sem ter o que fazer. A morrer de fome, antes andando...

O delegado quase deixou cair o cachimbo, num assombro:

- Não diga isso, compadre, não é possível! Deixar morrer aquele algodão todinho, sem mais pra quê!

- Pois mandou soltar no dia de São José! Eu ainda esperei obra duma semana...

O delegado se exaltou, gesticulando com o cachimbo:

- Aquela velha é uma desgraça! Tenho fé em Deus que o dinheiro que ela poupa ainda há de lhe servir pra comer em cima duma cama... Você não se lembra por que foi que eu saí das Aroeiras, compadre? Me convidou para abrir uma bodega, que me daria mundos e fundos, garantia de um tudo. Gastei o que tinha e o que não tinha em mercadoria, e o resultado foi aquele... Era obrigado a fornecer a ela pelo custo, tinha de fazer isso, fazer aquilo, e ela não me dava interesse de qualidade nenhuma. Um dia mandei tudo pro diabo, liquidei como pude o que possuía, e me larguei pra cá. Inda hoje não me arrependi... Mas você ficou, foi-se fiar nesse negócio de madrinha Maroca, teve o pago...

Chico Bento baixou a cabeça, concordando; olhou em redor, a casa caiada, a mesa envernizada, uma arca de couro, um relógio de parede:

- É, compadre, você está bem...

Lá de dentro a voz de Doninha chamou o marido:

- Luís, traz o compadre aqui, pra botar qualquer coisa no estômago!

Quando viu Chico Bento abancado, comendo, o delegado saiu da sala:

- Vou mandar dois cabras atrás de seu menino. Não mando praça, porque só tem lá na Redenção. Aqui no Acarape, só requisitando.

Do alpendre, mandou um moleque com um recado, e os dois cabras chegaram:

- Vocês vão ver se encontram um menino, filho de retirante, que atende por Pedro. Sumiu-se esta noite. Vejam lá se dão um jeito de achar. O pai anda em tempo de correr doido e é meu compadre!

Depois foi à cozinha, consolou Cordulina:

- Sossegue comadre, já mandei caçar seu filho. Se estiver por cima do chão, se acha...

Mas os cabras voltaram ao meio-dia sem o menino.

Um deles não conseguira apurar nada. O outro contou que o menino tinha sido visto na véspera de noite, num rancho de comboieiros de cachaça.

- Naturalmente tinha ido embora mais eles, de madrugada...

Cordulina já quase nem chorava.

Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?

Nesse mesmo dia, à tarde, tomaram o trem para a cidade.

Alma boa, o compadre Luís Bezerra! Tinha arranjado passagens, dera uma roupa sua ao Chico Bento, tinha feito a Doninha arranjar um vestido velho para Cordulina...

E agora, sentados, juntos, apertados, os três meninos que restavam muito agarrados a eles, abrindo os olhos de espanto à confusão de gente que se aglomerava no carro sujo, cuspido, fumacento - com as roupas brancas lavadas contrastando esquisitamente com a espessa sujeira dos corpos - Cordulina e o marido sentiram o trem apitar e sair correndo, e viram sumir a casa branca com o alpendre do lado, onde o compadre Luís Bezerra, em pé, de mãos nos bolsos, fumava o seu cachimbo.

No mesmo atordoamento chegaram à Estação do Matadouro.

E sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e se viram levados através da praça de areia, e andaram por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo.

Só aos poucos se repuseram e se foram orientando.

Cordulina acomodou-se como pôde, ao lado do cajueiro onde tinham parado.

Da banda de lá, um velho deitado no chão roncava, e uma mulher de saia e camisa remexia as brasas debaixo de uma panela de barro.

Cordulina foi à sua trouxa, e tirou de dentro um resto de farinha e um quarto de rapadura, última lembrança da comadre Doninha.

Deitado na areia, calçado com um pano, já o Duquinha dormia. Os outros dois metiam a mão na farinha engolindo punhados.

Chico Bento olhava a multidão que formigava ao seu redor.

Na escuridão da noite que se fechava, só se viam vultos confusos ou alguma cara vermelha e reluzente, junto a um fogo.

Tudo aquilo palpitava de vida, e falava, e zunia em gritos agudos de menino, e estralejava em gargalhadas e em gemidos, e até em cantigas.

E estendendo a vista até muito longe, até aos limites do Campo de Concentração, onde os fogos luziam mais espalhados, o vaqueiro sacudiu na boca uma mancheia de farinha que lhe oferecia a mulher e, procurando quebrar entre os dedos um canto de rapadura, murmurou de certo modo consolado:

- Posso muito bem morrer aqui; mas pelo menos não morro sozinho...

(Trecho de "O quinze" - 1930)

 

 

 

A Ocupação e a Sensação Angustiosa de Espera
 

 

Agora, que já tinha um serviço, João Miguel passava parte do dia fazendo longas tranças de palha, ao lado do milagreiro, que se sentava à soleira da porta, esculpindo os seus pedaços de anatomia.

A sensação angustiosa de espera, que tanto o martirizara nos primeiros dias de prisão, ia-se aos poucos abrandando.

Porque o que mais o torturava, a princípio, fora a indecisão sobre o seu destino, entregue às alternativas de bem ou de mal da justiça, feito um pau largado na força de uma correnteza.

A atitude permanente de festa, que sentia necessária, afligia-o como uma insônia.

Imaginara, no começo, que, ali, preso, tudo conspiraria para o comprometer, para o desgraçar, para o prender mais.

Porém, com o correr dos dias, com a oportunidade de um trabalho manual, ia-se suavizando a tensão nervosa. E mormente o tranqüilizou a indiferença geral por ele e pelo seu crime.

Já se entregava à sorte, disposto a tudo, até a ficar ali longos anos, os melhores anos de sua vida...

O milagreiro, que era solto ali dentro, não lhe abandonava a porta, sempre agarrado a um pedaço de pau e ao canivete, sempre seguido do enxame de cavacos.

Já lhe contara todos os seus passos, as paixões, as ambições, as boas e más fortunas, uma viagem ao Amazonas...

João Miguel notara:

- Também já andei lá no Amazonas...

- Você donde é?

- Dos Inhamuns. Mas vim de lá pequeno. Desde que me entendo, corro mundo...

O outro abanou a cabeça.

- Pra vir acabar aqui...

- Acabar, uma história! Deus me livre de me acabar aqui!

O milagreiro encolheu os ombros e, na sua voz comprida, de vogais intermináveis, arrastou:

- Ora, eu, que só peguei oito anos, nem me lembro mais de sair... Quanto mais você, que ainda nem foi a júri...

E o homem contara o desespero dos seus primeiros dias de cadeia, a sua fúria:

- Mas, depois, se vai indo e acostuma. Você é até dos mais mansos. Parece que nasceu aqui... Cadeia acaba sendo o mesmo que o Amazonas... Você, que já andou por lá, por força se lembra. Tem uns que, é só chegar, num instante se acostumam. Outros nunca passam de brabo...

João Miguel dissera apenas, torcendo cuidadosamente a palha:

- Uma coisa é ser, outra é parecer...

Porém, o fato é que a sua resignação era mais real do que simulada. Como todo caboclo, tinha, na alma, essa crença na fatalidade que tanto ordena o bem como o mal. Estava ali porque era destino... se cumpriu...

Não pensava no morto. E, quando, a um puxavante da consciência, tentava recordá-lo, sentia-o estranhamente afastado de si.

Que tinha ele, ali, agora, com esse desconhecido que morrera?

É verdade que a facada fora sua. É verdade. Mas por que não lhe ficara nenhuma marca do gesto?

A grande causa de esquecimento, a responsável pela pouca contrição da gente e a pouca constância no arrependimento, é o tempo não ser, como o espaço, uma coisa onde se possa ir e vir, sair e voltar... O que se passa no tempo, some-se, anda para longe e não volta nunca, pior do que se estivesse do outro lado de terra e mar.

Afinal, quem pode manter, num espelho, uma imagem que fugiu?

O Zé Milagreiro chegou a contar até a história da sua morte.

- Tinha meu roçadinho, Seu João... Eu mesmo broquei, encoivarei. Eu mais a mulher, rapando todo o dia com um caquinho de enxada, na terra braba. Inverno bom de legume, foi um milho e um feijão famoso. O milho já estava bonecando, o feijão florando. E o desgraçado todo o dia abria um buraco na ramada, metia a burra dentro. Eu reclamava, tapava a cerca. No outro dia, ia ver, estava a mesma presepada: a cerca furada e a sem-vergonha da burra estragando tudo. Fui ao miserável, perguntei se ele não tinha sentimento, se pensava que o suor dos outros era mijo da mãe dele... E aí pegou palavra daqui e de lá, e eu acabei lhe enterrando tanto assim de faca nos peitos. Pegou mesmo no coração.

Zé Milagreiro, enquanto conversava, acabava de esculpir uma cabeça de homem quase em tamanho natural, de perfil tristonho e pontudo, a cara fina e doentia de uma visagem.

Marcava apressadamente os olhos, a fenda estreita da boca, as pequenas orelhas duras e redondas como seixos, porque a encomenda era vexada, de longe, de um homem de Sobral que se botava pra Canindé: um doido corrido, que São Francisco curara, e ia, com a cabeça de pau, remir a sua dívida com o santo.

E, alisando no crânio chato do milagre a curva do cabelo na testa, Zé Milagreiro acrescentou:

- Eu não sou nenhum doido, pra pensar que é muito certo se matar um vivente... Mas também tinha a minha razão... E olhe, Seu João, só me botaram na cadeia porque os doutores pegaram com muita conversa, com história que o outro era um pobre pai de família...

Seguro na mão do preso, o grande ex-voto de pau, suposta imagem do louco, fitava no vago o olhar estranho.

- Como se eu também não fosse pai de família...

João Miguel, que já costurara com a trança toda a copa do chapéu e passava à aba, indagou:

- E que é feito da sua família, Seu Zé?

- Andam por aí espalhados lá no Riachão, onde eu morava. A mulher vive de fazer renda, de apanhar legume na safra; o menino mais velho deu-se aos padrinhos... uma mocinha que eu tinha casou com um cabra desgraçado, filho na desgraça...

Chegou junto deles um rapaz moreno, alto e magro, com as mãos nos bolsos da blusa desabotoada, um lenço vermelho no pescoço.

Acercou-se da porta onde os dois conversavam. Parou uns instantes, olhou a cabeça de pau, e lembrou:

- É ver o soldado Chicute! Escritinho! Também nunca vi diabo da cara de milagre como aquele!...

Afirmou-se novamente no ex-voto, riu-se:

- Eh! Eh! Adeus, Chicute! - e saiu assobiando.

João Miguel comentou:

- Depois que estou aqui, é a segunda vez que vejo esta criatura.

- É porque ele vive lá fora, mais os soldados. Como não é criminoso de morte, tem mais vantagem que os outros.

- E por que é que ele está aqui?

O outro baixou a fala:

- Quando vem alguém, e pergunta por que é que está preso, ele diz que foi por causa de umas cacetadas que deu noutro... Natural, tem vergonha de dizer que é ladrão...

O milagreiro murmurou, mais baixo ainda:

- Você não vá dizer que fui eu que lhe contei, que ele se dana. Foi ele que arrombou a loja do velho Lulu, e carregou tudo, até o dinheiro da gaveta de segredo. E nunca disse a ninguém onde escondeu o roubo...

- É engraçado ele não querer que a gente saiba!... - E João Miguel riu. - Na minha mente, quem estava aqui não se importava de contar mais nada...

- Por quê? Pois eu acho muito direito ele não querer contar...

Quem é que gosta de ter fama de ladrão, criatura? Mas antes matar do que pegar no alheio...

Dados os últimos cortes na cabeça, Zé Milagreiro separou-a pelo pescoço e ficou fazendo com o canivete, aqui, além, uns retoques.

João Miguel concluiu também os derradeiros pontos na palha.

E, pronto o chapéu, quebrou-lhe a aba na frente, pô-lo subitamente na cabeça polida do milagre.

- Olhe, Seu Zé, como o bicho está gaiato!

Vendo a estranha figura encarapuçada, dum ridículo singularmente doloroso que sugeria uma maldade ou uma profanação, Zé Milagreiro arrancou-lhe rapidamente o chapéu, como se receasse um castigo:

- Deixe disso, Seu João! Pode o santo se zangar!

 

(João Miguel - 1932)

 

 

A Arte de Ser Avó

 

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

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E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...

No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...

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Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...

(O brasileiro perplexo, 1964.)

 

 

 

A Velha Amiga

 

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.

Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.

Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.

E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.

Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.

(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo"  -  13/01/2001)

 

 

 

Rachel de Queiroz

(1910 - 2003)

 

Rachel de Queiroz, romancista e cronista brasileira. Nasceu em Fortaleza, Ceará, e residiu na cidade do Rio de Janeiro.

Com a publicação de O quinze (1930) tornou-se a única representante feminina do "romance do nordeste". Nos livros seguintes, João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), foi aperfeiçoando sua temática social e regionalista. Dora, Doralina (1975) e Memorial de Maria Moura (1992) são seus romances mais recentes: "De mim ele só chegava perto quando de serviço ou chamado meu. Nunca me tocou nem com a ponta do dedo, nunca também me olhou nos olhos. Nunca me sorriu." Dedica-se ainda à literatura infantil, ao teatro e à tradução.

No início da década de 1970, a Academia Brasileira de Letras modificou seus estatutos para receber Rachel de Queiroz, primeira acadêmica mulher do Brasil.

Faleceu em 04 de novembro de 2003.

Fonte: Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft


 

 

 

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