A
Noite
... le
ciel Se ferme lentement comme une grande alcôve, Et
l'homme impatient se change en bête fauve.
C.
Baudelaire
Chamamos treva à noite. A noite vem do Oriente como a
luz.
Adiante, voam-lhe os gênios da sombra, distribuindo
estrelas e pirilampos. A noite, soberana, desce. Por estranha
magia revelam-se os fantasmas de súbito.
Saem as paixões más e obscenas; a hipocrisia descasca-se e
aparece; levantam-se no escuro as vesgas traições, crispando os
punhos ao cabo dos punhais; à sombra do bosque e nas ruas ermas, a
alma perversa e a alma bestial encontram-se como amantes
apalavrados; tresanda o miasma da orgia e da maldade — suja o
ambiente; cada nova lâmpada que se acende, cada lâmpada que expira
é um olhar torvo ou um olhar lúbrico; familiares e
insolentes,dão-se as mãos o vício e o crime — dois
bêbedos.
Longe daí a gemedora maternidade elabora a certeza das
orgias vindouras.
E a escuridão, de pudor, cerra-se, mais intensa e mais
negra.
Chamamos treva à noite — a noite que nos revela a
subnatureza dos homens e o espetáculo incomparável das
estrelas.

Indústria
Que la fournaise flambe, et que les lourds marteaux, Nuit
et jour et sans fin, tourmentent les métaux!
A.
Brizeux.
O homem bate-se contra o mundo. Cada
força viva é um inimigo.
À parte a luta das paixões, trava-se na
sociedade a batalhaperene das indústrias.
Combate-se contra o tempo que atrasa e
contra a distância que afasta.
A locomotiva atravessa as planícies como
um turbilhão de ferro; a rede nervosa da telegrafia cria a
simultaneidade e a solidariedade na face do globo; o
steamer suprime o oceano; o milagre de Guttemberg
precipita em tempestade as idéias, reduzindo o esforço cerebral;
exacerbam-se os ímpetos produtores do solo, com a energia
vertiginosa das máquinas. Vibram as cidades ao rumor homérico das
caldeiras. Cada dia, o combate ganha uma nova feição e o ventre
fecundo, o ventre inexaurível das forjas, para as novas pugnas,
produz novas armas.
Bendita febre industrial!
Bendito o operário, mártir das
indústrias!
Estenda-se por todo o firmamento o fumo
que paira sobre as cidades, vele aos nossos olhos os abismos da
amplidão e os signos impenetráveis das esferas.

Inverno
Ya la
esperanza a los hombres Para siempre abandonó: Los
recuerdos son tan solo Pasto de su corazon.
J. de
Espronceda. (El Diablo mundo).
Inverno! inverno! inverno!
Tristes nevoeiros, frios
negrumes da longa treva boreal, descampados de gelo cujo limite
escapa-nos sempre, desesperadamente, para lá do horizonte,
perpétua solidão inóspita, onde apenas se ouve a voz do vento que
passa uivando como uma legião de lobos, através da cidade de
catedrais e túmulos de cristal na planície, fantasmas que a
miragem povoam e animam, tudo isto: decepções, obscuridade,
solidão, desespero e a hora invisível que passa como o vento, tudo
isto é o frio inverno da vida.
Há no
espírito o luto profundo daquele céu de bruma dos lugares onde a
natureza dorme por meses, à espera do sol avaro que não
vem.
Nem ao menos a
letargia acorda ao clarão de falsas auroras, nem uma vez ao menos
a cúpula unida das névoas abre um postigo para o outro céu, a
região dos astros. Nada! Nada! Procuramos encontrar fora de nós
alguma coisa do que nos falta e os pobres olhos cansados não vão
além dos cabelos brancos que caem pela fronte; sofre-se o
desengano do invernado que da fria choupana contasse ver a seara
loura dos bons dias por entre as franjas de neve que os tetos
babam ao frio.
Tudo sombrio e triste. Triste o derradeiro
consolo do inverno que embriaga entretanto como o último vinho dos
condenados: a recordação dos dias idos, a acerba saudade da
primavera.

O
Ventre
A atração
sideral é uma forma do egoísmo. O equilíbrio dos egoísmos,
derivado em turbilhão, faz a ordem nas
cousas.
Passa-se
assim em presença do homem: a fúria sedenta das raízes penetra a
terra buscando alimento; na espessura, o leão persegue o antílope;
nas frondes, vingam os pomos assassinando as flores. O egoísmo
cobiça a destruição. A sede inabrandável do mar tenta beber o rio,
o rio pretende dar vazão às nuvens, a nuvem ambiciona sorver o
oceano. E vivem perpetuamente as flores, e vivem os animais nas
brenhas, e vive a floresta; o rio corre sempre, a nuvem reaparece
ainda. Esta luta de morte é o quadro estupendo da vida na terra;
como o equilíbrio das atrações ávidas dos mundos, trégua forçada
de ódios, apelida-se a paz dos
céus.
A fome é a
suprema doutrina. Consumir é a
lei.
A chama
devora e cintila; a terra devora e floresce; o tigre devora e
ama.
O abismo
prenhe de auroras alimenta-se de
séculos.
A ordem
social também é o turbilhão perene ao redor de um
centro.
Giram as
instituições, gravitam as hipocrisias, passam os Estados, bradam
as cidades... O ventre, soberano como um deus, preside e
engorda.

Verão
La Débauche et
la Mort sont deux animables filles, Prodigues de baisers et
riches de santé, Dont le flanc toujours vierge et drapé de
guenilles Sous l'éternel labeur n'a jamais enfanté.
C.
Baudelaire
O
verão é o êxtase do fogo.
Desabrocha francamente a primavera púbere. O
esplendor viçoso das formas da juventude aguarda a carícia da asa
do estio que aquece e fecunda. Chega então a festa do amor, a
orgia do fogo.
Fulge no abrasado zênite o sol, como um troféu de
espadas nuas e a natureza enleada pelas serpentes da lascívia
estival, debate-se à luz, vencida, — bela amante que sucumbe ao
amor carnívoro, pungente de um semideus guerreiro, na própria
tenda de campanha, bêbedo ainda do furor do recontro, excitado
pelo cheiro cruento da matança.
Ser amada assim! suspirava a selvagem Rute, meiga e
aérea criança, no fundo misterioso do sangue.
Amor de verão!
Viver a intensidade mortal da vida, arder, arder e
morrer, como o fogo que cresce, cresce e de si mesmo morre,
enfermo do seu triunfo.

As Canções Sem Metro
Vibrações
Comme des
longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et
profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la
clarté, Les parfums, les couleurs et les sons se
repondent.
C. Baudelaire
Vibrar, viver. Vibra o abismo etéreo à música das esferas;
vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos.
Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à
semelhança os ânimos.
A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um
hino, ora o adágio oscilante da cisma. A cada nota, uma cor, tal
qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões.
Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante;
baixa à profunda e escura vibração das elegias.
Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
Daí o simbolismo popular das cores.

Verde, Esperança
c
A
impetuosa alegria da terra, à passagem de Flora, a primavera
verde, compromisso maternal do outono e da opulência.
Náufragos no mar.
Sem pão, sem rumo. Em roda, o gume afiado do
horizonte, a reverberação do sol nas águas e o silêncio solene da
calmaria. A vela do barco, flácida, pendente — imagem do
abatimento. Ligeira viração depois; denso nevoeiro... quatro dias!
sudário de brumas que envolve o barco, elimina o céu. Vão acabar
assim, amortalhados na bruma. Um ramo, apenas, sobre as águas, um
ramo cor da esperança. Salvos! Adivinha-se o continente salvador
através da névoa e o panorama verde das florestas.

Amarelo, Desespero
Ouro e sol; ouro, o desespero da cobiça, sol, o desespero
da contemplação: a cor dos ideais perdidos.
Sobre o leito, o cheiro mau das chagas era como uma
antecipação da morte. Descamava-se a pele em crostas ásperas sobre
o grude do pus. Ela morria, alcançada pelo sorteio inexorável da
Peste. À porta, o anjo negro da maldição; longe, a espavorida
caridade.
Ali, na parede, havia flores adornando um retrato de moço.
Simples lembrança da Páscoa, flores da aleluia, colhidas numa
escapada de amantes. Amor não faz quaresma... Cobertas de ouro as
árvores... Ela também triunfante: ouro sobre o esplendor adorado
do sexo... Agora fitava as flores secas. Junto dela, o filho,
pequeno animal sem vontade, sem vida, que lhe chegava aos lábios
um copo d’água.
Sobrara-lhe um filho nos desperdícios do passado, para
vigiar-lhe a agonia. Ninguém mais, ninguém mais, nem Deus com ela:
apenas as flores do desespero e aquele copo d’água de vez em
quando, que ela sorvia como uma medicina amarga de
lágrimas...

Azul, Ciúme
Céu e oceano, a soledade sem fim. O ciúme é isolamento,
queixa sem ecos do coração solitário.
Ao
despertar, estava só na triste câmara. Enferma e abandonada!
Calcadas aos pés as juras de ontem, como destroços de um ídolo
quebrado. Fronteira ao leito, a janela parecia alargar-se mais e
mais para mostrar o firmamento. Sob o reflexo azul sonhara Rosita
o abandono, eles felizes numa concha de safira, levados à flor do
grande lago, docemente, cantando, docemente, se a barcarola os
levasse. Morreu, fechando na pálpebra a estampa diurna daquele
azul fundo, deserto.

Roxo, Tristeza
Tinta tomada à palheta do ocaso e às flores da
morte.
Alegre, ela. Muita luz no espaço; bailava no ar o cântico
sereno da manhã; na relva os arbustos orvalhados tinham um
pequenino sol em cada folha. Somente as violetas sofriam, pungidas
pelo dia.
Outra manhã, tudo mudado. Na atmosfera, um torpor gélido e
sombrio. Os extremos da paisagem gastam-se na cerração como as
orlas de uma pintura velha: nem sol nem pássaros na
relva.
Agora, órfã.
As
violetas revivem, as melancólicas, desabrochando em suspiros, sob
as lágrimas da chuva.

Vermelho, Guerra
Sangue, cólera, vingança, os hinos marciais, golpes, o
incêndio, vermelho o manto dos tiranos e Marte, o astro dos
combates.
Da
casinha à beira-mar, olhos em febre, a velha mãe argüía a
distância. Lá, mergulhara o vapor que lhe roubava o filho para a
guerra. A tarde passa e a noite; a velha, imóvel, marmorizada na
dor, como uma escultura do Stabat Mater. E vem a aurora, uma
aurora brutal de chama e sangue. A mãe do soldado caiu como
morta.
Ouvira, das bandas da aurora, um grito de morte e a voz
perdida do agonizante era a voz do filho.

Branco, Paz
Arminho imaculado e virginais capelas, o sagrado leito das
mães, o rosto calmo dos mortos, os tranqüilos
fantasmas.
"Terminada a luta, minha boa Irene. Torno a ver-te enfim e
aos queridinhos. Ver-me-ás também. Como se fica velho neste
ambiente de pólvora queimada!"
Dizia assim a carta, datada do acampamento. Irene ergueu os
olhos para a tarde, os olhos rasos de pranto. Expirava o
crepúsculo na ditosa agonia dos patriarcas, lenta e mansa; errava
no ocidente a neblina lúcida da última hora, saudade apenas no dia
extinto. A estrela plácida das tardes parecia olhar a terra; em
frente alava-se a lua e o luar noctâmbulo ia, pelos caminhos,
semeando a difusão suavíssima da paz.
Irene abandonou-se ao êxtase contemplativo, gozando o
crepúsculo, como se lhe invadisse o sentimento a letargia edênica
do anoitecer.

Negro, Morte
O
contraste da luz é a noite negra.
Sente-se na epiderme a carícia do calefrio; envolve-nos um
clima glacial; estranha brisa penetra-nos, feita de agulhas de
gelo. Em vão flameja o sol a pino. Sente-se dentro na altura a
noite negra, invernosa, polar; sofre-se o contato da Sombra. Tudo
trevas, sinistramente trevas. O dia, resplandecente na alvura dos
edifícios, produz o efeito da prata nos catafalcos. Vemos as
flores, o prado. Monstros! Reclamam a carne do pé que os pisa; o
verme sôfrego espreita-nos através da terra... Rir?! Mas o riso
tem a cruel vantagem de acentuar, sob a pele, a
caveira...
Há
destas escuras noites no espírito.

Rosa, Amor
O
sorrir das virgens, e o adorável pudor, e a primeira luz da
manhã.
Esta criança pensativa. Acompanha com a vista o revoar dos
pombos; escuta o misterioso segredo dos casais pousados. Vive-lhe
ainda no semblante a candura da infância e nos formosos cabelos o
cálido aroma do berço. Súbito, duas pombas partem. Vão. Longe, são
como pontos brancos no azul; o bater das asas imita cintilações:
vão, espaço a fora, estrelas enamoradas.
A
cismadora criança experimenta a vertigem do azul e a alma escapa,
sedenta de amplidão, e voa ao encalço das estrelas.
Há
noites de pavor nas almas, há belos dias igualmente e gratas
expansões matinais, auroras de rosa como em Homero.
Há
também nas almas o incolor diáfano do vidro.
Dinheiro, amor, honraria, sucesso, nada me falta. O
programa das ambições tracei, realizei. Tive a meu serviço a
inteligência estudiosa do Ocidente e a sensualidade amestrada do
Levante. Tive por mim as mulheres como deusas e os homens como
cães. Nada me falta e disto padeço. Todos dizem: aspiração! e eu
não aspiro. Todos sentem a música do universo e a harmonia
colorida dos aspectos. Para mim só, vítima da saciedade! tudo é
vazio, escancarado, nulo como um bocejo.
E
os dias passam, que vou contando lento, lento torturado pela
implacável cor de vidro que me persegue.
Há, enfim, a coloração indistinta dos sentimentos, nas
almas deformadas.
Veio de longe, muito longe, mísero! Teve outrora um céu,
uma pátria, muitas afeições, a cabana da aldeia. Agora só tem o
ódio. O ódio mora-lhe no peito, como um tigre na furna.
Tiraram-lhe a pátria, a companheira, votaram-lhe à morte os
filhos, as filhas à torpeza; deram-lhe em compensação... Mostrava
a face preta, o sangue a correr. Quem são os teus
algozes?
—
Os homens brancos.
Ela odeia os homens brancos; odeia a torre aguda, ao longe,
como um punhal voltado contra os céus: odeia o trem medonho de
fogo e ferro, que muge e passa, troando, escândalo do
ermo.

Raul
Pompéia
(1863-1895)
Escritor naturalista
brasileiro, nascido em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, e
falecido na cidade do Rio de Janeiro. Bacharel em direito pela
Faculdade de Direito do Recife, participou do movimento
republicano contra a monarquia e da campanha abolicionista,
ambos na década de 1880. Com a proclamação da república, em
1889, aderiu com entusiasmo ao florianismo, movimento de apoio
à atuação e idéias nacionalistas de Floriano Peixoto,
presidente que governou o Brasil entre 1891 e
1894.
Raul Pompéia ocupou
diversos cargos públicos, como o de professor da Escola
Nacional de Belas Artes, a direção do Diário Oficial da
República e a direção da Biblioteca Nacional, todos no Rio de
Janeiro. Como escritor, não se prendeu à ortodoxia de nenhuma
escola, tendo tido influências do impressionismo, do
parnasianismo e, em sua obra mais importante, do realismo
naturalista. Escreveu Uma tragédia no Amazonas (1880),
seguindo-se Canções sem metro
(1881).
Sua obra mais importante é
também um dos pontos altos do romance brasileiro: O
ateneu (1888), livro com traços autobiográficos no qual,
pela primeira vez na literatura brasileira, são narradas
situações e conflitos psicológicos da adolescência. Em clima
naturalista, a obra trata da vida de adolescentes internos em
um colégio e reflete a subjetividade do autor que cria
personalidades marcantes, como o do odiado diretor da escola,
o Professor
Aristarco.
Fonte:
Enciclopédia Encarta - 2000 Microsoft
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