Orestes Pursued by the Furies (1862) - William Bouguereau

 

 
  

 

 

Poema Concreto
 
 

O que tu tens e queres saber (porque te dói), não tem nome.

Só tem (mas vazio) o lugar que abriu em tua vida a sua própria falta.
 

A dor que te dói pelo avesso, perdida nos teus escuros,

É como alguém que come não o pão, mas a fome,

Sofres de não saber o que tens e falta

Num lugar que nem sabes,

Mas que é na tua vida

Quem sabe é em teu amor.

O que tu tens, não tens.
 
 


  
 

O Estatuto do Homem
  
 

Artigo Primeiro

Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo Segundo

Fica decretado que todos os dias da semana,  inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo Terceiro

Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito  a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo Quarto

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único

O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo Quinto

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. 

 

Artigo Sexto

Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo Sétimo

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha  sempre o quente sabor da ternura.

 

Artigo Oitavo

Fica permitido a qualquer  pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo  Nono

Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

 

Artigo Décimo

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único

Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

 

Artigo Décimo Primeiro

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais compra o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso  e das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

(Santiago do Chile, abril de 1964 dedicado a Carlos Heitor Cony )
 
 
 
 


Ninguém me Habita
 
 

Ninguém me habita.

A não ser o milagre da matéria

que me faz capaz de amor,

e o mistério da memória

que urde o tempo em meus neurônios,

para que eu, vivendo agora,

possa me rever no outrora.

Ninguém me habita.

Sozinho resvalo pelos declives

onde me esperam, me chamam

(meu ser me diz se as atendo)

feiúras que me fascinam,

belezas que me endoidecem.
 

 

 

Thiago de Mello

(1926 - )

 

Thiago de Mello, poeta brasileiro. Nasceu em Barreirinha, Amazonas. Pertence à Geração de 45. É cantor, com discos gravados no Brasil e no exterior.

Seu livro Os estatutos do homem (1973) foi traduzido e publicado em diversos países (Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Cuba, Portugal e Estados Unidos), tendo vendido mais de 100 mil cópias.

Seus temas são a liberdade, a esperança, a luta contra toda repressão e a favor do homem ("Deixa eu cantar teu nome, liberdade, / que estou cantando em nome do meu povo").

Entre sua obra destacam-se Vento geral (1960), Faz escuro mas eu canto (1984), A canção do amor armado (1983) e Mormaço na floresta (1983).

 

Fonte: Enciclopédia Encarta 2000 - Microsoft

 

 

 

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