Poema Concreto
O que tu tens e queres saber (porque te dói), não tem
nome.
Só tem (mas vazio) o lugar que abriu em tua vida a sua
própria falta.
A dor que te dói pelo avesso, perdida nos teus escuros,
É como alguém que come não o pão, mas a fome,
Sofres de não saber o que tens e falta
Num lugar que nem sabes,
Mas que é na tua vida
Quem sabe é em teu amor.
O que tu tens, não tens.
O Estatuto do
Homem
Artigo
Primeiro
Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida,
e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo Segundo
Fica
decretado que todos os dias da semana, inclusive as
terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs
de domingo.
Artigo Terceiro
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão
direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem
permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a
esperança.
Artigo Quarto
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar
do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no
vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul
do céu.
Parágrafo único
O homem,
confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo Quinto
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da
mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a
armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar
limpo porque a verdade passará a ser servida antes da
sobremesa.
Artigo Sexto
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não
poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à
planta o milagre da flor.
Artigo Sétimo
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal
de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente
sabor da ternura.
Artigo Oitavo
Fica
permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do
traje branco.
Artigo Nono
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que
ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo Décimo
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será
permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas
tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único
Só uma
coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo Décimo Primeiro
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais compra
o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o
dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o
direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo
Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será
suprimida dos dicionários e do pântano enganoso e das bocas.
A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do
homem.
(Santiago do
Chile, abril de 1964 dedicado a Carlos Heitor Cony
)
Ninguém me Habita
Ninguém me habita.
A
não ser o milagre da matéria
que
me faz capaz de amor,
e o
mistério da memória
que
urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa me rever no outrora.
Ninguém me habita.
Sozinho resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.
Thiago de
Mello
(1926 -
)
Thiago de Mello, poeta
brasileiro. Nasceu em Barreirinha, Amazonas. Pertence à
Geração de 45. É cantor, com discos gravados no Brasil
e no exterior.
Seu livro Os
estatutos do homem (1973) foi traduzido e publicado em
diversos países (Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Cuba,
Portugal e Estados Unidos), tendo vendido mais de 100 mil
cópias.
Seus temas são a
liberdade, a esperança, a luta contra toda repressão e a favor
do homem ("Deixa eu cantar teu nome, liberdade, / que estou
cantando em nome do meu povo").
Entre sua obra destacam-se
Vento geral (1960), Faz escuro mas eu canto
(1984), A canção do amor armado (1983) e Mormaço na
floresta (1983).
Fonte: Enciclopédia
Encarta 2000 - Microsoft
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