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Amar
Que
pode uma criatura senão entre criaturas, amar?
Amar e esquecer?
Amar e malamar
Amar, desamar e amar
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que
pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal,
se
não rodar também, e amar?
Amar o que o mar trás a praia,
O
que ele sepulta, e o que, na brisa marinha
é
sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o
que é entrega ou adoração expectante,
e
amor inóspito, o áspero
Um
vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte,
e a
rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este é o nosso destino:
amor sem conta, distribuído pelas coisas
pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e
na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor
Amar a nossa mesma falta de amor,
e
na secura nossa, amar a água implícita,
e o
beijo tácito e a sede infinita.
As sem-razões do amor
Eu
te amo porque te amo.
Não
precepisas ser amante,
e
nem sempre sabe sê-lo.
Eu
te amo porque te amo.
Amor é estado de graça e com amor não se paga.
Amor é dado de graça, é semeado no vento,
na
cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários e a regulamentos vários.
Eu
te amo porque te amo bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não
se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e
da morte vencedor,
por
mais que o matem (e matam)
a cada instante de
amor.
Sentimento do
Mundo
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,
mas
estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem e o corpo transige
na
confluência do amor.
Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado,
eu
mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto
o
pântano sem acordes.
Os
camaradas não disseram que havia uma guerra
e
era necessário trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso, anterior a fronteiras,
humildemente vos peço que me perdoeis.
Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho
desafiando a recordação do sineiro,
da
viúva e do microscopista que habitavam a barraca
e
não foram encontrados ao amanhecer
esse amanhecer mais que a
noite.
O tempo passa? Não
passa
O
tempo passa? Não passa no abismo do coração.
Lá
dentro, perdura a graça do amor, florindo em canção.
O
tempo nos aproxima cada vez mais,
nos
reduza um só verso e uma rima de mãos e olhos, na luz.
Não
há tempo consumido nem tempo a economizar.
O
tempo é todo vestido de amor e tempo de amar
O
meu tempo e o teu, amada, transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida.
São
mitos de calendário tanto o ontem como o agora,
e o
teu aniversário é um nascer toda hora.
E
nosso amor, que brotou do tempo,
não
tem idade pois só quem ama escutou o apelo da eternidade.
Amor
O
ser busca o outro ser,
e
ao conhecê-lo acha a razão de ser, já dividido.
São
dois em um: sublime selo que à vida imprime cor, graça e
sentido.
"Amor" - eu disse -
e
floriu uma rosa embalsamando a tarde melodiosa
no
canto mais oculto do jardim,
mas
seu perfume não chegou a mim.
O amor antigo
O
amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de sua
presença.
Nada exige ou pede. Nada espera, mas do destino vão nega
a sentença.
O
amor antigo tem raízes fundas, feitas de sofrimento e de beleza,
Por
aquelas mergulha no infinito, e por estas suplanta a natureza.
Se
em toda parte o tempo desmorona aquilo
que
foi grande e deslumbrante, o antigo amor, porém,
nunca fenece e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança. Mais triste? Não.
Ele
venceu a dor, e resplandece no canto obscuro,
tão
mais velho quanto mais amor.
Para
Sempre
Por
que Deus permite que as mães vão se embora?
Mãe
não tem limite, é tempo sem hora,
luz
que não se apaga quando sopra o vento
e
chuva desaba, veludo escondido
na
pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento.
Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar
vestígio.
Mãe, na sua graça, é eternidade.
Por
que Deus se lembra
-
mistério profundo -
de
tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe
não morre nunca, mãe ficará sempre
junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino
feito grão de milho.
No meio do
caminho
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no
meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca esquecerei desse acontecimento
na
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Quadrilha
João amava Teresa
que
amava Raimundo
que
amava Maria
que
amava Joaquim
que
amava Lili
que
não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos,
Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e
Lili casou com J. Pinto Fernandes
que
não tinha entrado na
história.
Mãos Dadas
Não
serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O
presente é tão grande, não nos afastemos.
Não
nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não
serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não
direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não
distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não
fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O
tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
O Mundo é Grande
O mundo é grande e
cabe
nesta janela sobre
o mar.
O mar é grande e
cabe
na cama e no
colchão de amar.
O amor é grande e
cabe
no breve espaço de beijar.
José
E
agora, José?
A
festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e
agora, José? e agora,
Você? Você que é sem nome, que zomba dos outros,
Você que faz versos, que ama, proptesta? e agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho,
já
não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode,
a
noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não
veio,
não
veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora,
José?
E
agora, José? sua doce palavra, seu instante de febre,
sua
gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de
vidro,
sua
incoerência, seu ódio, - e agora?
Com
a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta;
quer morrer no mar, mas o mar secou;
quer ir para Minas, Minas não há mais.
José, e agora?
Se
você gritasse, se você gemesse,
se
você tocasse, a valsa vienense,
se
você dormisse, se você consasse, se você morresse....
Mas
você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia,
sem
parede nua para se encostar,
sem
cavalo preto que fuja do galope, você marcha,
José! José, para onde?
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo ano novo
Cor
do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano
novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido
talvez ou sem sentido),
Para você ganhar um ano
Não
apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
Mas
novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo
Até
no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu
interior)
Novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
Mas
com ele se come, se passeia,
Se
ama, se compreende, se trabalha,
Você não precisa beber champanha ou qualquer outra
birita,
Não
precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não
precisa fazer lista de boas intenções
Para arquivá-las na gaveta.
Não
precisa chorar arrependido
Pelas besteiras consumidas
Nem
parvamente acreditar
Que
por decreto de esperança
A
partir de janeiro as coisas mudem
E
seja tudo claridade, recompensa,
Justiça entre os homens e as nações,
Liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
Direitos respeitados, começando
Pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano novo
Que
mereça este nome,
Você, meu caro, tem de merecê-lo,
Tem
de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
Mas
tente, experimente, consciente.
É
dentro de você que o ano novo
cochila e espera desde sempre.
Um Ausente
Tenho razão de
sentir saudade,
tenho razão de te
acusar.
Houve um pacto
implícito que rompeste
e sem te
despedires foste embora.
Detonaste o
pacto.
Detonaste a vida
geral, a comum aquiescência
de viver e
explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem
consulta sem provocação
até o limite das
folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a
hora.
Teu ponteiro
enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter
feito de mais grave
do que o ato sem
continuação, o ato em si,
o ato que não
ousamos nem sabemos ousar
porque depois
dele não há nada?
Tenho razão para
sentir saudade de ti,
de nossa
convivência em falas camaradas,
simples apertar
de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas
conhecidas e banais
que eram sempre
certeza e segurança.
Sim, tenho
saudades.
Sim, acuso-te
porque fizeste
o não previsto
nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste
sequer o direito de indagar
porque o fizeste,
porque te foste.
Não Passou
Passou?
Minúsculas
eternidades deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente
cavernosa.
Não, ninguém
morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a tua
mão, nossas mãos -
rugosas, têm o
antigo calor
de quando éramos
vivos. Éramos?
Hoje somos mais
vivos do que nunca.
Mentira, estarmos
sós.
Nada, que eu
sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de
ter passado.
Acordar, Viver
Como acordar sem
sofrimento?
Recomeçar sem
horror?
O sono
transportou-me
àquele reino onde
não existe vida e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia
seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa,
suportar a
semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as
coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me
das feridas
que rasga em mim
o acontecimento,
qualquer
acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente?
E mais aquela
ferida que me inflijo a cada hora,
algoz do inocente
que não sou?
Ninguém responde,
a vida é pétrea.
Poema
de Sete Faces
Quando nasci, um
anjo torto desses que vivem na sombra disse:
Vai, Carlos! ser
gauche na vida.
As casas espiam
os homens que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez
fosse azul, não houvesse tantos desejos.
O bonde passa
cheio de pernas:
pernas brancas
pretas amarelas.
Para que tanta
perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do
bigode é sério, simples e forte.
Quase não
conversa.
Tem poucos, raros
amigos
o homem atrás dos
óculos e do bigode.
Meu Deus, por que
me abandonaste
se sabias que eu
não era Deus
se sabias que eu
era fraco.
Mundo mundo vasto
mundo
se eu me chamasse
Raimundo,
seria uma rima,
não seria uma solução.
Mundo mundo vasto
mundo,
mais vasto é meu
coração.
Eu não devia te
dizer mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente
comovido como o diabo.
Poesia
Gastei uma hora
pensando em um verso
que a pena não
quer escrever.
No entanto ele
está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá
dentro
e não quer sair.
Mas a poesia
deste momento
inunda minha vida
inteira.
Unidade
As plantas sofrem como
nós sofremos.
Por que não sofreriam
se esta é a chave da
unidade do mundo?
A flor sofre, tocada
por mão inconsciente.
Há uma queixa abafada
em sua docilidade.
A pedra é sofrimento
paralítico, eterno.
Não temos nós, animais,
sequer o privilégio de
sofrer.
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