Res in Harvest (1865)   - William Bouguereau

 

 

 

 

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Amar
 
 

Que pode uma criatura senão entre criaturas, amar?

Amar e esquecer?

Amar e malamar

Amar, desamar e amar

Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

Sozinho, em rotação universal,

se não rodar também, e amar?

Amar o que o mar trás a praia,

O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amor inóspito, o áspero

Um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte,

e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este é o nosso destino:

amor sem conta, distribuído pelas coisas

pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor

Amar a nossa mesma falta de amor,

e na secura nossa, amar a água implícita,

e o beijo tácito e a sede infinita.

 

 

As sem-razões do amor
 
 

Eu te amo  porque te amo.

Não precepisas ser amante,

e nem sempre sabe sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça e com amor não se paga.

Amor é dado de graça, é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários e a regulamentos vários.

Eu te amo porque te amo bastante ou demais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor. 
 

 

 

Sentimento do Mundo
 

 

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram que havia uma guerra

e era necessário trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso, anterior a fronteiras,

humildemente vos peço que me perdoeis.

Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho

desafiando a recordação do sineiro,

da viúva e do microscopista que habitavam a barraca

e não foram encontrados ao amanhecer

esse amanhecer mais que a noite. 
  

 

 

 

O tempo passa? Não passa
  
 

O tempo passa? Não passa no abismo do coração.

Lá dentro, perdura a graça do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima cada vez mais,

nos reduza um só verso e uma rima de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido nem tempo a economizar.

O tempo é todo vestido de amor e tempo de amar

O meu tempo e o teu, amada, transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário tanto o ontem como o agora,

e o teu aniversário é um nascer toda hora.

E nosso amor, que brotou do tempo,

não tem idade pois só quem ama escutou o apelo da eternidade.
 
 

 

Amor
 

O ser busca o outro ser,

e ao conhecê-lo acha a razão de ser,  já dividido.

São dois em um: sublime selo que à vida imprime cor, graça e sentido.

"Amor" - eu disse -

e floriu uma rosa embalsamando a tarde melodiosa

no canto mais oculto do jardim,

mas seu perfume não chegou a mim. 
 

 

 

O amor antigo
 
 

O amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de sua presença.

Nada exige ou pede. Nada espera, mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas, feitas de sofrimento e de beleza,

Por aquelas mergulha no infinito, e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona aquilo

que foi grande e deslumbrante, o antigo amor, porém,

nunca fenece e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança. Mais triste? Não.

Ele venceu a dor, e resplandece no canto obscuro,

tão mais velho quanto mais amor.

 

 

 

Para Sempre
  
 

Por que Deus permite que as mães vão se embora?

Mãe não tem limite, é tempo sem hora,

luz que não se apaga quando sopra o vento

e chuva desaba, veludo escondido

na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento.

Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça, é eternidade.

Por que Deus se lembra

- mistério profundo -

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre

junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino

feito grão de milho.

 

 

No meio do caminho
  
 

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho

tinha uma pedra.

Nunca esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.
 
 


 

Quadrilha
  
 

João amava Teresa

que amava Raimundo

que amava Maria

que amava Joaquim

que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para o Estados Unidos,

Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre,

Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e

Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história. 
  

 

 

Mãos Dadas
 

 

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considere a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.

não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.

não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. 
  
 

 

O Mundo é Grande
 
 

O mundo é grande e cabe

nesta janela sobre o mar.

O mar é grande e cabe

na cama e no colchão de amar.

O amor é grande e cabe

no breve espaço de beijar.
 
 

 

José
  
 

E agora, José?

A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora,

Você? Você que é sem nome, que zomba dos outros,

Você que faz versos, que ama, proptesta? e agora, José?

Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho,

já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode,

a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio,

não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?

E agora, José? sua doce palavra, seu instante de febre,

sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro,

sua incoerência, seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta;

quer morrer no mar, mas o mar secou;

quer ir para Minas, Minas não há mais.

José, e agora?

Se você gritasse, se você gemesse,

se você tocasse, a valsa vienense,

se você dormisse, se você consasse, se você morresse....

Mas você não morre, você é duro, José!

Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia,

sem parede nua para se encostar,

sem cavalo preto que fuja do galope, você marcha,

José! José, para onde?

 


 

Receita de Ano Novo
 
 

Para você ganhar belíssimo ano novo

Cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,

Ano novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido),

Para você ganhar um ano

Não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

Mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo

Até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)

Novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

Mas com ele se come, se passeia,

Se ama, se compreende, se trabalha,

Você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,

Não precisa expedir nem receber mensagens

(planta recebe mensagens?  passa telegramas?)

Não precisa  fazer lista de boas intenções

Para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar arrependido

Pelas besteiras consumidas

Nem parvamente acreditar

Que por decreto de esperança

A partir de janeiro as coisas mudem

E seja tudo claridade, recompensa,

Justiça entre os homens e as nações,

Liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

Direitos respeitados, começando

Pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano novo

Que mereça este nome,

Você, meu caro, tem de merecê-lo,

Tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,

Mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o ano novo

cochila e espera desde sempre.

 

 

 

Um Ausente
 
 

Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste

e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência

de viver e explorar os rumos de obscuridade

sem prazo sem consulta sem provocação

até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave

do que o ato sem continuação, o ato em si,

o ato que não ousamos nem sabemos ousar

porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz

modulando sílabas conhecidas e banais

que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste.

 

 

Não Passou
 

Passou?

Minúsculas eternidades deglutidas por mínimos relógios

ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.

A mão - a tua mão, nossas mãos -

rugosas, têm o antigo calor

de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.

Mentira, estarmos sós.

Nada, que eu sinta, passa realmente.

É tudo ilusão de ter passado.
 

 

 

Acordar, Viver
 
 

Como acordar sem sofrimento?

Recomeçar sem horror?

O sono transportou-me

àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa,

suportar a semelhança das coisas ásperas

de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas

que rasga em mim o acontecimento,

qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente?

E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora,

algoz do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea. 

 

 

Poema de Sete Faces
 
 

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse:

Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos não perguntam nada.

O homem atrás do bigode é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo,

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

 

 

Poesia
  
 

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.
 

 

 

Unidade
  
 

As plantas sofrem como nós sofremos.

Por que não sofreriam

se esta é a chave da unidade do mundo?

A flor sofre, tocada

por mão inconsciente.

Há uma queixa abafada

em sua docilidade.

A pedra é sofrimento

paralítico, eterno.

Não temos nós, animais,

sequer o privilégio de sofrer. 
  
 

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